segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Hoje

Lanço-me a pergunta em movimento.
Sempre em movimento,
caminhando,
deixando para trás as paisagens,
levando delas o que se pode levar.

Há uma leveza no Sim.
Um insustentável Sim que permite continuar.

Mas hoje vieste-me tu ao pensamento.
Tu presença incerta,
vaga,
numa estranha omnipresença.

E foi com um insustentável Não
que continuei o meu dia.

Não, hoje não poderia morrer.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Anjos caídos

Um sonho humano os trouxe à Terra

E vivem na Terra tropeçando nos Sonhos.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

A Estrela

Vivia uma estrela feliz no céu imenso.
Brilhava e sentia-se leve e feliz.
Até que um dia sentiu que devia pensar.
E pensou.

Primeiro pensou em como era feliz por poder viver no céu imenso e brilhar
Depois pensou, pensou
Pensou tudo de bom o que podia pensar.

Até que um dia, cansada de tanto pensar,
Disse para si mesma: “chega, agora chega!”
E quis deitar fora o órgão que criara.

Procurou, procurou e não o encontrou.
Sacudiu-se e esperou.
E então pensou que não resultou.
E por ter pensado viu que continuava a pensar.
Sacudiu-se de novo e esse sacudir-se mais forte produziu em si um pensamento de temor.

Assustada, a estrela olhou para a Lua Cheia que era o espelho do céu.
E o espelho do céu, que sabia tudo porque tudo espelhava
Olhou-a com uns olhos que a estrela desconhecia.
E através dos olhos da Lua Cheia, a estrela viu-se como nunca se tinha visto.

E isso pesou, pesou tanto que a estrela do céu caiu desamparada.
Quando acordou, atordoada, viu-se num outro imenso céu mas que não era céu.
Viu peixes e anémonas, corais e algas
Sentiu o seu corpo diferente
E diferente o seu sentir

Quando Neptuno a recebeu no seu trono
A estrela olhou aquele Velho com enorme manto e deixou cair uma lágrima
E o Velho do Mar, com ar sereno disse-lhe:
Não te assustes, pequena estrela.
Tens agora a Nostalgia das águas,
Mas a cada uma das tuas lágrimas,
Brilha no Mar um pedaço de Céu.

sábado, 26 de junho de 2010

momentos fragmentados

...e quando os rostos em seu redor explodiam em traços exagerados e as palavras eram ecos sem sentido;
quando o mundo inteiro se transformava numa massa quase-informe, numa caricatura ameaçadora;
apertava a pequena pedra polida que levava no bolso, repleta de Memória, a que chamava solidão.


...permaneceu na gruta uma Noite e um Dia. Caminhou pela escarpa íngreme que levava a lugar nenhum; já a meio caminho de lugar nenhum, sentou-se. E sem perceber se era Dia, ou Noite, adormeceu.


...acordou perdida e procurou-se nas páginas de um livro. Presa ao momento, incapaz de seguir qualquer continuidade, buscava apenas nas palavras, uma que a salvasse.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

pudesse...

Pudesse todo o Tempo condensar-se
no Instante supremo do Encontro

E que esse Tempo contraído - denso e intenso


Único - na harmonia dos quatro elementos

Pudesse explodir num Lugar

quarta-feira, 16 de junho de 2010

...uma espécie de tabuinha Órfica


Num espaço/tempo qualquer, aquém/ além dos factos
Numa dimensão aquém/além terra, aquém/além história,
perpetuar-se-á um Encantamento.

E de alguma forma sentirás esse Abraço
que não é nem mais forte nem mais fraco que,
que não é nem mais doce nem menos doce que,
mas que é inteiramente (m)eu.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Eyvind Kang feat Mike Patton - I Am The Dead

a erosão dos sonhos

Sinto os olhos da Esfinge cravados na carne
Diz-me - pergunto-lhe a medo -,
o que provoca a erosão dos sonhos?
o crescimento?... ou a morte?...
Ela aproxima-se, abre a boca
E ouço o grito do despertador.

terça-feira, 8 de junho de 2010

tempos

O Céu estava azul, sem nuvem alguma, e parecia proteger o Mar, ao longe, na sua leve agitação.
A areia era a da manhã - virgem, sem traços ou pegadas, como um écran branco antes de qualquer filme.
Uma leve brisa imprimia um ténue movimento aos minúsculos grãos finos e brancos que se deslocavam como enxames e eram como que uma evidência de vida.
Ao lado, as rochas serenas pareciam ajudar o Céu naquele equilíbrio.

- Sentes?
- Sim, sinto.
- É bonito.
- Pois é.
- Achas que o Céu protege o Mar?
- Não.
A linha do horizonte é uma ilusão.
- Sim.
Uma visão da cegueira.
- …
- …

E o Sol foi-se escondendo por detrás da Serra. O Céu escureceu aos poucos e algumas nuvens apareceram como pinceladas feitas por gestos distraídos.

- …
- …
- Sabes há quanto tempo aqui estamos?
- Não.
Esqueci-me do relógio.
- Pensei que o tinhas trazido.
- Está com certeza algures por aí.
- …
- …
- Está a ficar frio aqui.
- Sim, está.

O Mar tornou-se mais agitado, sob o efeito da brisa que já era vento e a areia corria descontrolada fazendo ricochete nas rochas e agredindo-lhes os corpos.

- Penso que é tempo de ir embora.
- Concordo.

domingo, 23 de maio de 2010

Requiem ao teu rosto em mim

Fecha a porta. Respira fundo. Cumpriu o dia e pode despir-se das palavras com que o desenhou. Despir-se dos rostos que o habitaram. Não porque estes e aquelas lhe sejam hostis Pelo contrário. Agradece-lhes. Sustentaram-na nesse dia preparando o acolhimento da noite. Pelo contraste. Apenas pelo contraste. Sente que algo se organiza em si enquanto cumpre assim, os dias, cheios; apesar do cansaço; apesar da vontade nem sempre se manifestar “a tempo”.

Mas agora urge despir-se. E caídas as palavras do dia que, uma vez no chão, como que por magia desaparecem, aí está a outra camada. Mais palavras. Mais aglomerados – palavras-quistos.

Pega num pau de incenso e acende-o. Olha para o chão. No meio do caos percebe que há um amontoado que não lhe pertence. Teria sido esse o estrondo da manhã. Arruma aquilo que não pertence ao caos. “O amante do Vulcão”, “Justine”, “O Estorvo”. Livros que está a ler ou que está para ler ou reler. E que por isso foram ficando ali, na beira da estante, no caos da estante, nunca no caos do chão que é outro.

Tudo tem um tempo certo, pensa enquanto arruma.

E o caos do chão é feito de cores e de muitos cheiros. Não de palavras. Não consegue agora relacionar-se com as palavras. Quer esvaziar-se delas.

Olha para os cd's amontoados em cima da pequena mesa. Hesita. Mas não. Não quer ouvir música. Com ou sem palavras. Apenas o incenso. Apenas os cheiros e as cores. Os cheiros intensos das tintas e da cola. A música pertence a outras esferas. Várias. Hoje não quer nenhuma delas. Não quer fazer vibrar as emoções. Nem as contemplações. Não quer ser transportada. Quer estar ali. Simplesmente ali com o que aparece sem ser chamado.

E essa outra camada instala-se; pesa. Está longe o respirar fundo; o fechar da porta; o chegar a casa. Precisa fechar outras portas, ou abrir outras portas.

Não. Não quer que lhe expliquem mais nada. Nesse momento odeia as palavras - essas, que lhe chegam. Não a palavra. Nunca a palavra! Mas todas as palavras que saltam pela sua cabeça, pelo seu corpo, pela casa. Que fazem ricochete e a atingem onde não podiam atingir. As palavras lançadas em cegueira pelos porquês ou pelos porque.

Ela quer o silêncio. Não quer explicações. Apenas o silêncio. Em si.

Ou então a palavra...

E olha aquele rosto ausente. Desvia parte do caos e senta-se no chão. Frente a frente com esse rosto. Não se pergunta porque ele está aí. Não quer perguntas. Algo o trouxe até si. Algo fez com que se instalasse em si. Algo fez com que crescesse e se alargasse por todo o seu écran. Mas agora está ali. Na sua frente. Com as dimensões do humano. E como está não estando, permite-se tomá-lo nas suas mãos. Tocar cada milímetro de pele, de músculo; daqueles pequenos músculos que pertencem à inconsciência da expressão e nos revelam; e são com as palavras a verdade. Toca com a atenção que só a pele e um olhar amoroso são capazes. E percorre-o aos poucos. Tentando sentir, perceber não construindo, a sintonia. Como está tão cravado em si... Sabe, porque a manhã lhe disse, que esse rosto partirá.

E as palavras que não quer ouvir chegam numa torrente imparável. De uma fonte seca – palavras-espectro. Ela afasta-as. Está totalmente absorvida por esse rosto. Pela sua presença e pela sua partida. Tenta sentir o que de si levará. O que de si já está a levar. Está frágil. (chora?) Sabe que o deve deixar partir e continua a percorrê-lo com os dedos, com as mãos – essa prolongação do cérebro e do coração – numa carícia derradeira que é despedida. Chora - uma lágrima-requiem ao que podia ter sido. Mas não prende. Nunca prenderá. Despede-se. E por entre as suas mãos esse rosto vai-se dissolvendo (não ainda dentro de si, apenas nas suas mãos) – ela esculpe a sua dissolução aceitando o vazio que se fará.

A torrente de palavras-ruído continua mas nesse momento ela está no outro lado do vidro.E o rosto já foi, sente. Aceita. Com as mãos vazias, aceita. O pau de incenso chegou ao fim. A música não toca. A palavra nunca veio. Ela permanece sentada no chão. Ela e a já quase ausência do rosto. Parte do caos do chão. Por entre os cheiros da cola e das tintas. E espera que passe a nostalgia do que não foi. Do que talvez não tivesse que ser. Espera o sorriso, o seu sorriso que sempre aparece. O sorriso engendrado longe dos seus olhos, da sua consciência, numa penumbra qualquer de si. O sorriso com que se levantará do caos e prosseguirá o dia. Não já a manhã. Não já a Noite. Mas o dia.


quinta-feira, 20 de maio de 2010

Ontem era Noite e foi no teu rosto que me deitei procurando ouvir o silêncio. E quando a Noite se fez mais Noite, naquele lugar onde o dia de amanhã não existe ou deixa de ser meu, quase-soltei as palavras e quase-o Sonho te trouxe para junto de mim.

terça-feira, 18 de maio de 2010

segunda-feira, 3 de maio de 2010

o corpo das palavras

Nada é inconsequente.
Todo o gesto é dotado de força
Assim como todo o não-gesto.

Um não-gesto não é inacção.
Um não-gesto é a negação de um gesto que urge
Uma força que implode
Implode em quem o nega e àquele a quem é negado.

Desta energia subtil a moral não dá conta.

Os textos, seja qual for a sua natureza, têm um corpo fluídico, um ante-corpo no qual se engendra o seu carácter.

Se mergulho na tristeza, afasto as palavras para que estas não sejam tomadas por ela.
Ou crio um espaço entre mim e a tristeza.
Um espaço que, não a retirando do meu horizonte, põe-na em perspectiva.
(uma pequena deslocação, um pequeno passo - atrás, à frente, ...)
Esse espaço, o espaço do meu encontro com a tristeza, é assim o corpo das minhas palavras. Palavras de um encontro com a tristeza, não palavras de tristeza.
(o Ar que vem de um Fogo que nasce da Água)

Quando o texto acaba, então, posso permitir-me a dissolução.

Mas existem palavras sem corpo. Palavras que não chegam a ser texto
(serão realmente palavras?)
Palavras sem Fogo e sem Água. Puro Ar, etéreo, sem "chão", sem consistência.
Porque o espaço do texto é um jogo de forças em equilíbrio ténue.
E há um ponto, um ponto onde ele se torna possível.
Se afastamos o olhar da emoção, as palavras são Ar. Se o olhar é fulminado pela emoção, as palavras são Água ou Fogo - dissolução ou exaltação extremas. Pura interioridade incomunicável, ou pura exterioridade.
E o corpo do texto, como todos os corpos, exige os quatro elementos. O equilíbrio entre os quatro elementos.
Falta-me falar da Terra. Falta-me sempre falar da Terra.
Corpo incompleto, este das minhas palavras. Corpo mutilado.
Corpo a que voltarei

quarta-feira, 7 de abril de 2010

terça-feira, 30 de março de 2010

domingo, 28 de março de 2010

Mar Morto ou a Montagem

Há um fundo loiro, claro, de olhos azuis. Um fundo bonito, pelo ar tranquilo que confere ao plano, mas que não chega a ser serenidade. Ele é dotado de uma vontade – quer ser fundo. E, sem que perca esse ar de paisagem tranquila, mantém uma luta constante pelo domínio do espaço; atento às mais pequenas movimentações internas, ao formato, estende-se e contrai-se de modo a não deixar lugar a qualquer interferência, a qualquer elemento que perturbe aquilo que julga ser a plenitude do espaço. Este fundo busca a moldura - procura capturar o Tempo; anseia pelos limites definitivos que o possam eternizar.

E sobre esse fundo, tu. Num inquieto repouso que salta à vista no teu olhar e no teu sorriso petrificados. Na rigidez de toda a tua postura. A tua luta é com o espaço interno. Constróis e reconstróis o dique. Retocas a cada instante esses contornos que permitem o teu enquadramento nesse fundo. Precisas dessa imagem, desse formato.
Também tu estás disposta à moldura. Não a constróis pois esgotas-te em outra tarefa. Deixas que a construam. Olhas em tua volta e ele, o fundo, tranquiliza-te. Vês que cabes nele, tu, esse teu tu contornado. Ele dá-te a tua medida num espelho agradável onde vês reflectidos esses limites que talvez te salvem, que te vão salvando, pensarás tu.

É uma má composição, penso eu ao confrontar-me com a imagem. Uma montagem que não convence.

Entrevi-te em outro plano, em outras coordenadas – um Mar imenso no centro de uma clareira criada por um relâmpago que nos apanhou sem protecção numa Noite qualquer.

Será impossível morrer afogado nas águas do Mar Morto. Mas nele, tudo o que é Vida não cabe. É essa a sua forma de Salvação.

sábado, 20 de março de 2010

Annemarie Schwarzenbach, O Vale Feliz


"Mas eu não sou arqueóloga. Não tenho profissão. Poderia exercer qualquer uma. Viver em todas as cidades. Sentir-me em casa em todos os países. Mas não transijo comigo própria: o preço a pagar pela “boa vida” era demasiado elevado.

Recordo-me de todos os avisos que me foram dirigidos, de todos os conselhos. Mas vocês utilizaram uma língua que eu não entendia. Lamentaram-se da minha deserção, da minha sede de viagens, das minhas errâncias. Mas esqueceram-se de me dizer quem seria o juiz.

Reprovaram-me por me expor voluntariamente ao perigo, por considerar a aventura como um pretexto desperdiçar as minhas forças e desdenhar dos deveres que me teriam sido impostos por uma “vida normal”.

Como representam vocês a aventura? Essa palavra nada significa para mim. - A pista das caravanas por detrás do muro do jardim? Quererão transformar a Terra numa plantação de couves? E em seguida escoá-las a preço baixo? Cada um com a sua sorte, dizem vocês? - Eu não tenho sorte ao jogo.

Eu não poderia desperdiçar as minhas forças: pois o esforço está interrompido.

Pedem-me que me esforce, sim, mas com que objectivo?

Respondo: Não há qualquer objectivo que desejasse alcançar utilizando falcões amestrados e matilhas de cães.

E termino: só me meti a caminho para aprender o terror."

segunda-feira, 15 de março de 2010

sem Nome

Invoco o teu rosto, ó ilusão
afasto os mil e um véus que te ocultam o olhar.
Entrevejo a tua boca, ao fundo
ainda ornamentada por um quase-arco-íris e
faço a Pergunta.

(introduzo o Fogo naquilo que é Água)

E na Resposta sem timbre,
na Voz do Silêncio,
a palavra de Morte devolve-me ao quotidiano.

É tudo.

terça-feira, 2 de março de 2010

a ilha do meu fado

esta mão que me escreve


A imagem paira - a imagem incandescente que se sobrepõe a outra imagem, em movimento – um sonho. O filme desenrola-se sob a forma de um continuum sonoro. Um baixo que me percorre o corpo, entra na minha circulação sanguínea, condiciona os movimentos dos músculos. E na cabeça, essa imagem que dirige o silencioso caule, como um maestro apanhado num gesto invulgar. Como um fractal, contém em si todo o caos maior do sonho. Toda a sua ordem (ainda) imperceptível.
É a minha mão - a minha mão direita. Uma mão que eu poupo e protejo subtraindo-a tanto quanto possível aos percursos necessários, aos caminhos sinuosos, o que os torna ainda mais sinuosos, porque sujeitos a gestos sem charme, sem carisma; movimentos do medo e, simultaneamente, da sua recusa.
Por um acidente quotidiano ela, a mão, sofreu uma mutilação. Entre o indicador e o médio abriu-se uma brecha – uma incisão perfeita na membrana que separa agora a parte inferior da superior. Eu não quero olhar. Tento escondê-la, de mim própria, dos outros; tento torná-la dispensável,caminhando sem pensar para dissipar o medo aterrador. Em vão, evoco imagens de outros cortes, de outras brechas na carne que me apavoraram, fizeram estremecer; que me pareceram fatais e que acabaram por sarar. Não acalma, mas continuo a caminhar, porque tenho de fazê-lo, porque não tenho saída, porque preciso continuar a cumprir os percursos quotidianos. E por uma decisão estranhamente autónoma do conjunto, os meus passos levam-me para um ponto deste lugar onde eu sei que alguém fecha as brechas, sara as feridas, torna-nos novamente aptos, funcionais, no esquema deste espaço. Os meus passos levam-me enquanto a minha cabeça se alheia, com uma sensação de necessidade parcial a par com o descrédito e o medo. Chego à enfermaria, que é também a entrada, na hora exacta em que a enfermeira, uma mulher forte, bem estruturada, de bata branca, deixa o seu gabinete e deposita uma chave, a sua chave, por detrás de um balcão. Olha-me, reconhecendo talvez a minha disfuncionalidade, o meu estropiamento que atingiu o olhar e eu exponho-lhe a minha mão que ainda não tive coragem de olhar, em desespero, por uma necessidade indefinível de ajuda e de dúvida e medo perante essa ajuda.
Preciso que alguém veja aquilo que eu não consigo ver, talvez porque a solidão de se saber mutilado seja o mais insuportável ainda que não se creia na cura, ainda que não se saiba sequer se se quer ser curado, se a cura de uma mutilação não encerra outra, mais funda. E quando o olhar dela pousa sobre a brecha da minha mão, e da sua boca ouço sair o conjunto de sons articulados, olho. Talvez por acreditar que o pavor supremo suprime toda e qualquer articulação de sons. E ainda que a sonoridade do seu discurso seja perturbadora, tranquilizo-me nela, pois é discurso. A minha ferida, o meu medo, o meu estado e o meu terror produziram um discurso sobre o qual eu posso pousar e colher qualquer coisa próxima da coragem.
Olho a brecha. Por entre os dois pedaços de pele que parecem jamais poder voltar a unir-se, pulsa uma imensa massa incandescente. É feito de lava o interior da minha mão. De vida ou de pré-vida. De inferno. De limbo, de entre-vidas. De caos primevo e cíclico. Um movimento contido, prestes a explodir, onde se pode ouvir os gritos dos titãs aprisionados. E eles chamam-me. Numa frequência que só eu pareço ouvir.
Articulo de novo na minha mente as primeiras palavras da mulher de modo a poder ouvir como discurso o que retive apenas como imagem. - Tem que deixar correr muita água sobre essa ferida, tinha dito ela.
Vai ser preciso suturar?, pergunto. Vai, responde ela abrindo muito os olhos sem se virar para mim, enquanto dá início à tarefa. Não protesto. Entrego-me, apesar de sentir que estará errado suturar. Que a pele pode voltar a juntar-se, que o pavor pode ser atenuado, adormecido, mas que eu sei que aquele magma vive dentro de mim. Que eu sei de que é feita a minha mão, ainda que ela possa voltar a funcionar no dia-a-dia. Sei que, a qualquer momento, as vozes voltarão a gritar, mais alto; que o movimento se exaltará, que os titãs encontrarão tecido vulnerável para nova brecha, que terei que dialogar com isso.
E enquanto a senhora bem estruturada, vestida de branco, sutura a brecha, que é ferida, negando a sua própria intuição de que seria preciso deixar correr muita água sobre a mesma, eu ouço as vozes chamarem-me para dentro dela, como um canto de sereia, irresistível, necessário, fatal.
E mantendo em mim a Noite, a média luz na qual a consciência se liga à verdadeira Luz, protejo-me daquela cura, entrego-me ao medo, disponibilizo-me para o mundo que vive na minha mão. Aceito o fascínio do terror, enquanto a senhora sutura, sob o modo da cegueira necessária, da cegueira que não cuida mas extirpa. Sutura a verdade do mundo, a verdade da vida. Fecha a brecha, a brecha do terror e da noite, a falha. Sutura o movimento. Lobotomiza a vida maior para que o quotidiano se (re)instale adormecido, funcional, inócuo. Sutura para mutilar a vida profunda. É esse o seu labor, a missão que se impôs no seu pequeno laboratório de mutilação maior, o laboratório que permite que o tempo siga a horizontalidade. Sutura não para me curar mas para se curar a si própria e ao seu mundo.
Saio de lá com a mão restaurada. Mas eu vi, eu guardo viva em mim a verdade da minha mão. E ainda que essa verdade não esteja mais exposta, não provoque por si só o terror, em mim ela persiste viva. E eu sei que não mais a minha mão poderá deixar de escrever, descrever, reescrever essa imagem, cumprindo a sua verdade, a verdade do mundo que me chama. Pois nesse caos primordial que entrevi na minha mão, eu sei que reside a verdade do meu estar no mundo.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Tibete





http://sunyat.free.fr/web_acappella/

duas exposições fascinantes no CCB – Museu Colecção Berardo

Robert Longo – Uma Retrospectiva

A primeira sensação é de descrença absoluta! - como é que “isto” pode ser feito a carvão?!?
A segunda é pensar: ok!, mas os painéis enormes são ampliações de fotografias dos trabalhos mais pequenos. Nada disso. Tudo “original”. Alguém explicou que foram feitos a partir de uma projecção dos pequenos, e trabalhados sobre essa projecção.
Aos domingos existem visitas guiadas pelo preço de 3 euros onde “todas as dúvidas” poderão ser esclarecidas.
De qualquer modo, grandes e pequenos, os trabalhos são absolutamente fascinantes! Mais. Saímos de lá com uma vontade imensa de correr para casa, pegar em carvão e papel e começar a tentar entrar nos processos.
Imperdível!
Até 25/04/2010


Annmarie Schwarzenbach (1908-1942)
Auto-retratos do Mundo


O que dizer? Não sei porque ela ressuscitou nos últimos tempos, com a edição da Morte na Pérsia, com o documentário na Braço de Prata, agora a exposição, a conferência no Instituto Franco-Português que uma reunião burocrática me impediu de ir, mas BEM-HAJA pela ressureição que ma deu a conhecer.
Personagem fascinante, mais uma que me apetece conhecer até aos limites do possível.
Da exposição das fotos, um pensamento sobre a fotografia: Autênticidade. Marginalidade em relação àquilo que parece dominar a fotografia em certos circuitos – o politicamente (tecnicamente) correcto e, claro, o photoshop – feito instrumento do primeiro. As fotos de Annmarie Scwarzenbach, sendo de reportagem fotogáfica, respiram ar fresco. Mas isto digo eu. Voltarei lá para assistir com mais atenção aos vídeos sobre ela.
Senão: o hino português que acompanha um vídeo sobre a mocidade portuguesa na secção das suas fotos em Lisboa e que se torna verdadeiramente insuportável. Mais uma vez, digo eu...


segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

sétimo sentido ou a mancha













Para lá do betão, para lá do verniz, por formação orgânica, morfológica, as vozes estão aí. Chegam-nos num silêncio pleno. Difusas. Vozes de presenças que se inscreveram, que se vão inscrevendo. E a melodia está lá. Para ser desenterrada, desenhada, recuperada à distância; recuperada ao vazio que a protege do óbvio – o óbvio que não é evidência.

Escrevo para te alcançar. Para que se faça Noite – a noite primeva que estala o verniz. A noite que dilui todas as formas – a minha, a tua, esta “nossa” que não me chega.

E as palavras opõem resistência. Com a inércia própria de todo o chão. Resistem a entrar na Noite, a entrar no Vazio.

E as palavras são camadas, nós somos camadas de palavras. Palavras que produzem reflexos, lançados em todas as direcções - do espaço, do tempo -, reflexos que nos ofuscam.

E é preciso escavar mais fundo, retirar a crosta inútil da superfície. Das palavras que nos definem, que definem a ordem, o cosmo e, porque definem, confinam.

É preciso peso. Pisadas mais fortes. É preciso quebrar o verniz sobre o qual caminhamos sem caminhar, porque a medo, porque queremos ir mais longe quando devemos ir mais fundo. Difícil, difícil quebrar o verniz de nós próprios e do mundo. O verniz instalado nas palavras e aceder ao húmus da verdade, da nossa verdade. Perseguir as palavras que nos digam, seguir o seu rasto. Pois elas são um dos espelhos do Mistério.

E a linha pesa. Rasuro e espero que surjas, tu noite, tu e a noite, dessa rasura, dessa linha desfigurada, desse alfabeto não inventado. Mancho o papel. Espero o sinal.

O nome não nasce na inscrição. O nome que te evoca. O nome onde ecoas. Não se inscreve (pois) está inscrito em mim, algures, disseminado, omnipresente, nesse lugar mágico onde também tu existes sem o saberes. Não, não por um sentido romântico mas pela evocação do caminho


Somos nas vidas uns dos outros lições – de alegria ou dor;

somos caminhos – terra batida, betão, areia fina ou água.

Somos ruas – vias de sentido obrigatório ou proibido.

Somos (uns para os outros) repetições – variações do motivo que trazemos.

E em cada encontro tentamos resgatar todo o fracasso passado ou futuro.

Tentamos compreender e resolver. Tentamos dissolver.

Buscamos a Salvação – a possibilidade do gesto justo, correcto. De um último retoque que nos salve, nós, nossa obra – a fusão perfeita, as águas límpidas, o espelho perfeito. A integração.

Somos sempre (uns para os outros) uma nova possibilidade de Luz – pura subida ou queda, queda no mais fundo, o que vem a ser o mesmo –


Escrevo para ouvir a voz deste vazio que se fez em mim pela tua quase-presença, pela sonoridade do teu silêncio. Este vazio que me chama.

Apago as luzes. Espero um sétimo sentido – a metamorfose dos outros seis em algo outro, algo que desconheço.

(Do sexto surgiu a tua quase melodia; dos cinco, surgiu tudo o que é divinamente humano).

E talvez o caminho que evocas se cumpra precisamente nesta quase-presença que me impele a procurar-te onde não estás, a descobrir-te onde possivelmente não moras.

(Mas a ti, o que te chega de tudo isto?)

Talvez já me esteja a cumprir contigo nesta clareira em que a vontade está desperta.


domingo, 14 de fevereiro de 2010

convite à estranheza

Convido a estranheza.

Pago o preço da viagem

Percorro com ela os locais familiares.

Tomo um café com a estranheza no meu café habitual

Levo-a a casa, abro-lhe a porta e dou-lhe a dianteira.

Mostro-lhe todas as divisões e permaneço com ela por alguns momentos em cada lugar,

dedicando-me aos meus afazeres sob o seu olhar atento.

Levo a estranheza para a cama e deixo que me envolva o corpo,

que me desvende, que nos desvende, que nos recrie.

Depois de uma Noite com a estranheza é preciso que ela parta, que eu parta.

É preciso que acorde só para o novo dia.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Tashi Delek!

Losar - o Novo Ano Tibetano, 2137 - ano do Tigre de Ferro


Cântico do Losar, Techung

domingo, 7 de fevereiro de 2010

de "A Morte de Virgílio"

Os bons livros não são aqueles que (apenas) lemos mas aqueles que nos reescrevem. Esses são verdadeiramente os nossos livros. Não os escolhemos. Eles escolhem-nos. Escolhem-nos na altura certa em que sabem poder entrar em diálogo connosco, em que sentem que poderão fazer-nos dialogar com os vários espaços de nós. E os subterfúgios a que recorrem são subtis - basta que estejamos atentos, a um encontro fortuito, a uma conversa, a um sonho. Eles sabem quem são os seus leitores e quando. A minha relação com Hermann Broch começou há uns anos. Um ouvir dizer, um texto seu sobre música cuja tradução me foi facultada generosamente pela minha querida Maria Filomena Molder, uma interlocutora de sempre, a aquisição dos dois volumes de "A Morte de Virgílio" há cerca de um ano. E chegado o momento ele saltou da estante contrariando os meus projectos de leitura. Estava na hora. E realmente é esta a hora dele ressoar em mim.
Dois excertos que partilho, quem sabe, servindo de ponte subtil para um outro chamamento.

"Nada do que é terreno consegue realmente abandonar o sono e só quem nunca esquecer a noite que traz consigo consegue fechar o anel, consegue voltar da intemporalidade do começo à do fim, consegue empreender sempre de novo o percurso circular, ele próprio astro na imutabilidade do decorrer do tempo, emergindo da escuridão, desaparecendo na escuridão, nascimento e renascimento no reino nocturno e do reino nocturno, acolhido pelo dia, cuja claridade penetrou na escuridão, dia que contém a noite: sim, assim tinham sido as noites, todas as noites da sua vida, todas as noites através das quais ele tinha andado, cheio de medo da inconsciência, que ameaça sob a noite, cheio de medo da ausência de sombras que está sobre eles, cheio de medo de abandonar Pã, cheio de um medo que conhece os perigos de uma dupla intemporalidade, sim, assim tinham sido aquelas noites, ligadas ao limiar da dupla despedida, noites do sono do mundo imutavelmente constante, se bem que nas praças, nas ruas, nas tabernas, absolutamente constantes em cidades e mais cidades, desde o início, ecoando inaudível das lonjuras do tempo e mesmo por isso insistentemente percebidas, os homens bramavam, sono também isto, embora nos salões de festas e mais festas os poderosos do mundo se deixassem homenagear, rodeados de archotes e de música, sorrindo-lhes rostos e mais rostos, cortejados por corpos e mais corpos e eles próprios sorrindo, eles próprios cortejando, sono também isto, embora ardessem as fogueiras das sentinelas, não só em frente dos castelos, mas também lá fora, onde havia guerra, nas fronteiras , nos rios negros como a noite e nas orlas das florestas sussurrantes de noite e também sob os agressivos e estonteantes gritos dos bárbaros que emergem na escuridão, sono isto também, ais sono como o dos velhos desnudos que em antros fedorentos dormiam o último resto de vigília dos seus corpos, como o dos bebés que sonham sem sonhos partindo da miséria do seu nascimento para a vigília estúpida de uma vida futura, como o do grupo de escravos acorrentados nos porões dos navios, que como vermes atordoados estavam estendidos nos bancos, nas pranchas, nas pilhas das amarras, sono e mais sono, rebanho e mais rebanho, erguidos acima da indistinção do seu solo original, como cadeias de colinas, que repousam na planície, afundando-se no inalteravelmente materno, no permanente regresso que ainda não é intemporalidade e que no entanto a gera de novo em cada uma das noites terrenas; sim, assim tinham sido estas noites, assim sempre elas tinham sido, assim também era esta, talvez para sempre, noite na soleira equilibrada entre a intemporalidade e o tempo, entre a despedida e o regresso, medo e salvação, e ele, preso à soleira, noite após noite esperando na soleira, com a vista turva pelo lusco-fusco da orla da noite, nas trevas da orla do mundo, ele, conhecendo o acontecimento do sono, ele tinha sido levado até ao inalterável, e tornando-se ele próprio forma, foi arremessado para trás e lançado para cima para as esferas da poesia, para o reino intermédio do conhecer terreno, para o reino intermédio das mães, da sabedoria e da poesia, para o sonho, que está para além do sonho e atinge o renascimento, meta da nossa fuga, a poesia.

Fuga, oh fuga! Oh noite, a hora da poesia. Porque a poesia é uma espera vigilante, no crepúsculo, poesia é abismo com prenúncios de crepúsculo, é espera na soleira, é simultaneamente comunidade e solidão, é mistura e medo da mistura, sem impudícia na mistura, tão sem impudícia como o sonho dos rebanhos adormecidos, e no entanto medo de uma tal impudícia: oh, poesia é espera, ainda não partida, mas constante despedida."

(A Água: A chegada; pp. 70-71)



"O homem é um animal erecto, ele só, mas estende-se para descansar e dormir, para o amor, para a morte -, mas também nesta tripla qualidade do seu jazer ele se distingue de todos os outros seres. Erecto, destinado a crescer, a alma do homem estende-se para cima a partir dos abismos obscuros das suas raízes no húmus do ser até à redoma das estrelas cheirando a sol, carregando para cima a sua sombria origem de Poseidon e de Vulcão, trazendo para baixo a transparência da sua meta de Apolo e quanto mais se torna forma impregnada de luz devido ao seu crescimento, tanto mais se ensombra, assumindo forma, ramificando-se e desdobrando-se como a árvore, tanto mais se torna capaz de unir, na sombra da folhagem dos seus ramos a escuridão e a luz; mas quando se estende para o sono, para o amor, para a morte, quando se torna, ele próprio, paisagem estendida, então já não é sua tarefa fundir os opostos, porque dormindo, amando, morrendo, fecha os olhos e já não é nem boa nem má, é apenas um escutar único e infinito: alma infinitamente estendida, infinitamente rodeada pelo anel dos tempos, infinita no seu repouso e por isso livre de todo o crescimento; sem crescer como a paisagem que é, abrange todas as épocas, como esfera inalterável, inalterável e saturnina, estende-se da Idade do Ouro à Idade do Bronze, sim, mesmo para lá até regressar à do Ouro e devido à sua fusão com a paisagem, devido à sua prisão no que é terreno e nas paragens terrestres, em cuja superfície se separam as esferas da luz celeste e da escuridão da terra, é ao mesmo tempo fronteira entre as regiões superiores e inferiores, separando e ligando as esferas, pertencendo sempre, qual Jano, a ambas, à levitação das estrelas como à da gravidade da pedra, às do éter como às dos fogos dos infernos, qual Jano infinidade duplamente orientada, qual Jano alma infinitamente distendida, repousando no crepúsculo, de tal modo que o acima e o abaixo podiam ser, ao seu atento desejo de saber, sem se fundirem, de igual significado: sem significado, sem ser digno de qualquer escuta ou desejo de saber, lhe surge pelo contrário o acontecimento como tal, já que não as sente nem como crescimento, nem como processo de murchar ou de secar, nem sequer como ventura ou incómodo, mas como permanente regresso, como o permanente retorno para dentro do seu próprio ser, o retorno do decurso saturnino que tudo abrange, em que as paisagens da alma e da terra infinitamente se estendem, impossíveis de distinguir na sua inspiração e expiração, em seu germinar e amadurecer, nas suas colheitas férteis e nas colheitas malogradas, na sua morte e na sua ressurreição, nas estações da sua natureza ilimitada entrelaçadas no retorno eterno, rodeadas pelo anel da eterna semelhança e daí estendendo-se em descanso para o sono, para o amor, para a morte -, um escutar da paisagem da alma, o auto-escutar saturnino do morrer isento de morte, de ouro e de bronze ao mesmo tempo.

Ele escutava o processo de morrer; não podia ser de outro modo. A consciência deste facto viera-lhe sem medo, quanto muito com aquela clareza extraordinária que de um modo geral surge com o aumento da febre. E agora, deitado na escuridão, escutando a escuridão, compreendeu a sua vida, e compreendeu até que ponto ela tinha sido uma contínua escuta do desenvolvimento da morte, desdobrada a consciência, desdobrado o gérmen da morte que se encontra desde o início em toda a espécie de vida e a constitui, desdobramento duplo e triplo, saindo um do outro e desenvolvendo-se através dele, cada qual a imagem do anterior e realizando-se precisamente por isso – não era esta a força onírica de todas as imagens e sobretudo das que são capazes de determinar uma vida? Não seria também esse o caso da caverna nocturna dos mundos que, prodigiosa e aterradora pela intemporalidade, pejada de estrelas e com promessas de eternidade, surge como uma abóbada por cima de todo o ser? Porque o que outrora, em seus tempos de rapaz, tinha sido uma representação ingénua e infantil da morte, a ideia da sepultura, em que o corpo é depositado, converte-se na grande imagem da caverna e a construção da cripta na baía napolitana tinha sido então mais do que a simples repetição e concretização da velha ideia da infância; não, com essa construção tinha-se dado expressão à universal abóbada da morte, ele passara toda uma vida sonhando desperto. Por causa do todo abrangente poder dessa meta tinha ele tentado durante muito tempo, na verdade por demasiado tempo, encontrar o seu verdadeiro destino, por causa desta meta sempre conhecida mas nunca consciencializada, ele tinha interrompido todos os percursos antes do tempo, insatisfeito com todos eles, e não se tinha mantido na profissão de médico, nem da astrónomo, nem na de sábio, filósofo e professor e nem elas o tinham realizado; a exigente, incompleta imagem do conhecimento da morte permanecera continuamente diante dos seus olhos e nenhuma profissão poderia adequar-se a ela, uma vez que não há nenhuma que não esteja exclusivamente dependente do conhecimento da vida, nenhuma, à excepção dessa para a qual tinha sido impelido e que se chama Poesia, essa que é a mais estranha de todas as actividades humanas, a única consagrada ao conhecimento da morte."

(O Fogo: A Descida pp. 88-90)


sábado, 6 de fevereiro de 2010

as brincadeiras de Pã explicadas a leigos

texto retirado do site da Oficina de Psicologia

http://www.oficinadepsicologia.com/panico.htm

"Explicar o que é um ataque de pânico só faz sentido para quem não tenha passado por um... É daquelas coisas que só se conhece, vivendo-a. Então, para si, que nunca teve um ataque de pânico, aqui vai uma tentativa de explicação: imagine que se sente ansioso; mais ainda; mais ainda; à beira do descontrolo; completamente descontrolado - o coração a 1000 à hora, um aperto no peito, parece que o ar não chega, não vai conseguir respirá-lo; o mundo à sua volta adquire um tom de irrealidade e distância, complicado pela sensação de tontura; o estômago embrulha-se; as mãos suadas; as pernas ou a boca dormentes; a garganta apertada; um vazio de raciocínio; a necessidade absoluta de fugir, de fugir de dentro de si, desse corpo que, sem mais nem porquê, decidiu maltratá-lo, ameaça morrer-lhe; o chão foge-lhe; a loucura espreita-o. E, depois do que parece uma eternidade, você volta gradualmente à normalidade, assustado, ainda, mas cansado, tãããooo cansado!

Horrível, não é? No entanto, há pessoas que passam por várias destas crises por semana. Adianta de pouco dizer-lhes que não é nada, que se acalmem, que são só coisas da cabeça delas. Infelizmente, estes são, frequentemente, os comentários bem-intencionados que pessoas com pânico ouvem. E o resultado é sentirem-se incompreendidas e isoladas, reservando para si o sofrimento do seu dia-a-dia.

Ter um ou mais ataques de pânico não chega para se definir uma perturbação do pânico mas, na ausência de uma intervenção precoce, quem sofra de 2 ou 3 destes episódios, acaba por vir a sofrer de perturbação do pânico.
O motivo é simples: a experiência é tão aterradora que, rapidamente, a pessoa começa a preocupar-se, de uma forma persistente, com a possibilidade de ter uma nova crise ou de lhe acontecer algo de terrível na sequência de um ataque de pânico (como morrer, enlouquecer ou perder os sentidos). Quando isto acontece, já estão reunidos os critérios para se definir a situação como sendo uma perturbação do pânico.

Ao pânico, facilmente se associa uma outra perturbação: a agorafobia. O pânico, pelas suas características - crises súbitas, inexplicáveis, surgidas do nada - exige uma explicação racional! Depois de uma crise, qualquer pessoa, conscientemente ou não, começa a procurar razões para se ter sentido tão mal; e, como quem procura sempre encontra... As razões aparentemente mais evidentes prendem-se com a saúde física: é um problema no coração, é o descontrolo da loucura, é uma quebra de açúcar no sangue que o vai fazer desmaiar de repente... E se voltar a acontecer, como é que pode ser socorrido rapidamente ou procurar ajuda? Bem, se estiver numa auto-estrada, de onde não existem escapatórias durante alguns quilómetros, ou numa ponte, será difícil ser salvo a tempo, pensa. O mesmo se passa em locais com muita gente que, ainda por cima, criam uma situação de "inundação sensorial", capaz de fazer reagir o organismo menos sensível. Ou locais fechados, como um cinema, teatro ou sala de espectáculos, em que seja difícil chegar à porta e sair se, a qualquer momento, o corpo voltar a dar sinais de que o vai atraiçoar.

Assim, os locais de onde resulte difícil ou embaraçoso sair, em caso de necessidade, começam a ser evitados, bem como os locais onde já se produziram ataques de pânico, porque ficam associados, de uma forma traumática, aos maus momentos que lá se passaram."

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

pelo sabor do gesto

As "afinidades electivas" têm a sua dinâmica própria. Do novo cd da Zèlia Duncan, Pelo sabor do gesto, recriação do As-tu déjà aimé (pour la beauté du geste) da banda sonora do filme Les Chansons d'Amour.

music for one apartment and six drummers

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

fevereiro



Saúdo o “meu” mês (com as aspas de toda a posse). Meu por tão variados motivos, é sempre uma referência neste ciclo inventado/criado, o que não significa falso ou aleatório. É sempre tempo de mudança, tempo de balanço. Tempo marcante porque, de algum modo, fora do tempo. Foi muitas vezes sob o seu filtro que os meus olhos viram com maior clareza, ou que a minha vida se esboçou em outras formas, recuperando ou iludindo um início. Por vezes foram socos secos no centro da Alma. Estrondos que provocam o vácuo e que só mais tarde, num depois, percebemos ou, pouco importa, julgamos perceber. E (uma) compreensão vem nesse pós-estrondo porque o centro se desloca. Porque nos deslocamos nesse espaço a partir do qual (nos) percepcionamos.
E neste instante da (minha) trajectória, neste ponto preciso de confluências a que chamo eu, a reconstrução emerge como prioridade. Não por decisão. Não por um acto de vontade, esse órgão fraco em mim, mas como uma Evidência.
É tempo de balanço, sinto. O maior balanço, penso eu neste aqui e agora. O que não significa tempo de acção mas, quem sabe, tempo de passividade, de disponibilidade para ser agida.
Fevereiro, se buscarmos a sua origem etimológica, está ligado a morte e purificação. De acordo com Ovídio, está ligado à purificação pela água – a água que limpa, que é memória, ou a transmutação das memórias que são sempre reconstrução. A morte de instantes cristalizados que impedem o fluir das águas (das emoções). Na mitologia etrusca, com importância central no mundo romano, encontramos a deusa Februua, mãe de marte. Vemos assim a força, a acção e mesmo a violência terem a sua origem nessa necessidade de transmutação, de alquimia. E esse Marte, tantas vezes cego e implacável, ligado às forças mais subterrâneas (Hades, Plutão), às forças ancestrais mais primitivas que trazemos em nós, a amígdala reptiliana que persiste na nossa estrutura mental, tem assim um propósito maior.
Fevereiro, mês associada a catástrofes naturais, é o tempo mais curto no ciclo do calendário gregoriano. Um mês misterioso, que traz ao mundo seres que no ano seguinte recusa voltando a aceitá-los quatro anos depois. Foi como se o mundo Ocidental quisesse reduzir o tempo da morte – o maior tabu desta civilização; anular a impermanência. Solar por vocação, o Ocidente fixa a forma. A ponta do icebergue, virando o olhar às forças caóticas que a fizeram eclodir e que a sustentam. E virar os olhos à transitoriedade é virar os olhos ao tempo. A mitologia grega está repleta destas alusões.
A reconstrução virá assim de uma observação atenta ao diálogo entre as forças de Februua e Marte. Numa aparente passividade disponível para o que quer que seja.
Februa dá ainda o nome a uma Borboleta

domingo, 31 de janeiro de 2010

resposta ao tempo

grito

Há gritos feitos de dor, de alegria ou de susto. Há gritos que são desespero, outros contentamento.
E existem gritos que são tudo isso a um tempo.
A sua base é sempre a mesma – o excesso. O limiar do suportável. O que grita em nós? A alma ou o corpo? Ambos. Não há alma sem corpo nem corpo sem alma, embora haja por vezes uma relação de tirania.
Quando audível, o grito faz-se no corpo por ordem da alma. Como se o corpo tivesse que ser maior para poder acompanhá-la. E o grito audível liberta. Alivia momentaneamente a Alma que encontra nele um órgão a mais. O grito faz-se órgão. Faz-se ser. Autonomiza-se e tem uma acção. Ele entra no Mundo e perturba-o. Perturba a ordem quotidiana. É o incompreensível. A expressão de um desconhecido que ressoa em todos os corpos que, de algum modo, o reconhecem. O grito não deixa o mundo indiferente. Há pessoas fechadas em manicómios simplesmente porque na rua, gritaram. Gritaram com quanta força tinham e sem “saberem” porquê.
Quando silencioso, o grito sufoca. Tem que procurar outras expressões. O mal-estar é o mesmo. O mal-estar é o excesso.
Tudo em mim é grito silencioso que precisa disciplinar-se.




Passeava com dois amigos ao pôr-do-sol – o céu ficou de súbito vermelho-sangue – eu parei, exausto, e inclinei-me sobre a mureta– havia sangue e línguas de fogo sobre o azul escuro do fjord e sobre a cidade – os meus amigos continuaram, mas eu fiquei ali a tremer de ansiedade – e senti o grito infinito da Natureza. (Munch)

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Specchio - a essência profunda do Mundo que se oculta nos Mistérios do Tempo

Quem somos? De que somos feitos? Existirá mesmo uma fronteira, uma linha delimitada que separe cada um de nós daquilo e daquele que é Outro? Construir-se-á a nossa individualidade nesta delimitação? Creio que não.

Onde termino eu e começa a a “individualidade” de todos aqueles com quem me cruzei, cruzo e cruzarei? Onde começo eu?

Sustentar-me-ei sozinha? Saberei o que sou para mim sem que os outros que amo me devolvam uma imagem de mim própria?

Não seremos todos fruto dos jogos de espelhos em que entramos mesmo antes de entrarmos no Mundo?


Hoje senti a necessidade de celebrar o dia de aniversário de alguém que já partiu. Alguém que nunca conheci mas que, de certa forma, entrou com uma estranha intensidade naquilo que entendo como “eu”.

Pela simples razão de que, para o seu irmão, eu sou de algum modo – estranhamente intenso também – um reflexo seu. Por essa razão pedi autorização para“publicar” aqui alguns textos que não foram publicados. É uma singela homenagem à existência de alguém que, não tendo conhecido, sinto conhecer, e que ajudou na construção de uma das mais bonitas amizades da minha vida.

À Vida da Ana, onde quer que ela esteja agora.


Excursos sobre o medo

Ana Maria Ferreira

Cascais, Dezembro 1995


I (Heróis)

O medo faz, às vezes, o pacto com a nostalgia

e o perfil da coisa tem olhos de gente, pode estar

num casamento, ser. É um modo, uma fórmula,

ninguém sabe bem onde bolsa a virtude e onde está

o segmento do corpo ou da alma. Ele está silencioso:

o sorriso, a mão que se estende solidária e aérea, o esgar do amor.

Terríveis as composições, essas fórmulas matrizes,

essa podagem de folhas feitas mármore.

Porém, é com esses segmentos de imagem

tosca que se fazem os heróis. O medo cria, às vezes,

com a nostalgia, pérfidas imagens.


III (Os Ácaros)

Curioso pensar que a virose é o medo

enlatado num ácaro em que o médico é a fada

fugaz do seu saber. Morrer,

é assim como ter muitos ácaros na carpete,

e todos, por fim, dizerem que na mente,

a constipação tem o mesmo enigma do acaso.


IV (A Varanda)

Tenho um medo de morte, minha amiga, de não saber

o que te gerou, qual o plasma, a semente, a virilha

que assim te quis única e a mim me amordaçou.

Não relato de ti porque não sei dizer o que não sei, tu és a amiba,

a biopsia do intestino delgado da minha raiva

e saber-te, era mais complicado do que saber de mim

e eu destituí-me de morgado. No pouco que desperta,

nessa flor de Lys que teima em crescer sem água

numa varanda sem história nem paisagem, talvez aí?


V (O Cais)

Uma milha marítima sobrou nos meus pés

e o Oceano já não é o Oceano. Limito o medo

ao cais, faço aí o entreposto dos aromas, paga-me

quem pode e os outros passam livres

por não saberem que um pouco de mar a menos,

basta para perder o cais e o destino.


VI (O Berço)


Em uma singela praça de coreto onde nem a música,

sequer, se adivinha, faço diariamente o berço

enquanto o medo me coroa de rainha. Aí eu sei

que cada passo não deslustra, aí a morte tem uma taberna,

aí, ainda, desconheço qual a bala que pode furar

quem sempre a espera. Enfim, praças e coretos

são apenas esquadrias da vida, sequer memórias,

porque lembrar é como perder no casino

o plasma do começo, a história.


VII (O Nome)

O medo é a metáfora que não come o corpo

mas o rosto que diz de si a sua alma.

Nele, no olhar, na boca, no nariz que é o pior

bocado, porque secundário como é, desiste,

nada se esconde. O medo constrói o nome.


VIII (Outubro)

Há certas noites em Outubro em que a chuva

rebenta, vertical, molha o nosso espanto e faz

dos dedos que seguram o cigarro uma imensa solidão.

Como voltar atrás, como saber o que está perdido?

O cigarro, a chuva, e esse Outubro que inicia,

a monção do medo estão, obviamente, a chegar

à outra ponta do segredo e quando aí se chega

não se pode escrever mais. Relembro.


IX (O Bar)

Não fazes a mínima ideia do que é o medo

quando o sol se vai. O vidro reflecte a nossa imagem

e não existe nem diálogo, ou prazer, ninguém.

Bebe-se o que existe e quem morreu primeiro

vence. E como é tudo mais complexo, os vivos sofrem

e nada lhes dói a não ser o modo de ficar.


X (O Baile)

Não sei como se encontraram os vestidos, nesse tempo

parado, como hoje em que a memória trouxe os meninos

de uma praia distante, vergastados pelo vento, pela areia

e pelas histórias que alguém lhes contou. Não eu que nos vestidos

vejo o bibe, o alpendre, o olhar cruzado

entre quem amava e não chegou. Nada, como estar

quieta, em minha casa, que pode ser areia, deserto,

e talvez, a alma desses vestidos, e dos meninos que matou.


XI

O medo é a forma letal de estar vivo

como os animais que sem malícia nos alimentam.

O medo faz-nos felizes e ímpios.


XI (Breve espaço de lazer)

O medo é o instinto da alma quando o Destino

abre brechas no pano e salta dele

o odor da morte, a quebra, o corpo, o risco

no papel que pode ser ainda, a caligrafia

do primeiro escriba, o que nos deu o nome.

O medo, agora que lhe escrevo a forma, é assim

como a pele que sempre esteve nos braços:

nós olhamos, vemos o filamento das veias, o sulco

de um músculo e a solidão descai nos dedos

feitos, eles próprios, silêncios, quantas vezes, aço.

O aço, é, enfim, a caixa onde o medo fica.

Não é por acaso que a bala, o punhal, a sina,

tem no metal a metáfora, o modo, o fim.

E nele, nesse suor que nem sempre rima,

nesse estar vigilante – o medo motiva – reparte-se

a tristeza, o sonho, o amor. O medo é a vida.


O Natal

Quando o grande amor acaba, fica,

quase sempre, um ódio inútil, destituído

de razão, assim como o inferno que os humanos

sabem fazer porque ainda lhes falta o verdadeiro.

E, no entanto, atrás da sombra desse amor

está o aconchego. Mesmo se não é visível,

ficam lâminas de felicidade, gestos, lapsos

e êxtases tanto mais preciosos porque alastram

enquanto – quem goste – fuma um cigarro.

E na tabuada do medo, às vezes, peste,

quando se medita, uma amizade que tem outro gosto:

única na cumplicidade, traz recado e eles

transformam o corpo numa solidão compartilhada

e sem corpo. É como um pêndulo fiel

e límpido. É, talvez, a bem-aventurança.

Mas nem todos sabem que é isto o Natal.

23/12/97

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Specchio




Foi uma pequena brincadeira, uma primeira experiência com o windows live movie maker.
As imagens do Céu, reportam-se à noite de passagem de ano e foram avidamente "capturadas" por mim que queria guardar a Lua Cheia.
A sequência de Litografias, ilustram a maravilhosa história de Daphnis e Chloe como só Chagall saberia fazer. E para terminar a ficha técnica atribuindo a César o que é de César, as músicas utilizadas são o Adagio para Cordas de Samuel Barber e o Adagio do Concerto para piano em Lá maior, K488 de Mozart. Salto as interpretações.

luz silenciosa

A rua está vazia. As poucas pessoas que aqui passam, passam em silêncio, apressadas, como se o lugar onde estou fosse neste momento um vazio que é urgente atravessar. Deitam-me um olhar de onde salta um misto de interrogação e reprovação – como pode ela estar ali?, e um abanar de cabeça que não chega a ser.

Há um silêncio que invoca a Noite e que se sobrepõe ao ladrar furioso do cão da esquina e a todos os restantes sons inúteis. O único som em harmonia com o silêncio deste instante, - que com ele compõe a banda sonora - , provém da dança dos pedaços de papel que giram em torno da mesa onde estou, cumprindo a coreografia e a vontade do vento.

O frio intenso condenou este lugar. E quem permanece em lugares condenados, condenado estará, penso eu, com a minha costela hebraica, com a ressonância do meu nome. Neste momento, o postal que me serve de marcador à “Morte de Virgílio” - Luz Silenciosa - voa também. Sinto um misto de estremecimento e fascínio ao vê-lo entrar no bailado juntamente com os pedaços de papel. Pousou. E no fim deste andamento levanto-me para apanhá-lo como se do acto de o recuperar dependesse a minha salvação.

O casal de irmãos que diariamente aqui vem almoçar dobra a esquina. Olha a montra, como sempre, e entra. O sino da Igreja confirma o cumprimento deste ritual diário – é meio-dia.

Chega outro “condenado”. Entra para ir buscar o café mas virá sentar-se na mesa ao lado e permanecer. Arrumo as minhas coisas coisas com uma estranha urgência e parto. Preciso voltar para casa com a imagem intacta do vazio que encontrei.