sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Então é Natal!



Feliz Aniversário Cigarra

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

As tuas mãos, Avó

A palavra é Milagre.
Para mim, que sinto a necessidade de (me) experimentar um pouco (n)os vários domínios criativos, a escrita é talvez, de entre eles, o mais complexo.
Escrever envolve uma alegria e uma dor imensas, lado a lado, como as duas faces do mundo - o dia e a noite.
Escrever implica-nos de uma maneira muito profunda. Há que escavar fundo para que a linguagem deixe de ser instrumento e passe a ser espelho. Difícil - porque é com essa mesma linguagem que vivemos o quotidiano no que ele tem de superfície. Difícil - porque temos que procurar destruir em nós as molduras com que revestimos certas vivências de modo a podermos suportá-las.
É a hora da verdade - de uma verdade muito particular.
E, por outro lado, para quem se habituou a estes mergulhos, para quem (se) busca Luz nesta procura, difícil é também não escrever. Há uma espécie de escuridão que se vai alastrando. Uma escuridão densa, com peso e volume – real.
Faz hoje doze anos que a minha Avó partiu. Nunca consegui escrever sobre “isso”. Sobre o grande e eterno Presente que ela é na minha vida. Sobre esse Ensinamento único que a sua Vida e Morte foram para mim. Várias vezes tentei. Esperei a distância. Mas o tempo sempre desaparece quando procuro afastar este silêncio.
Todos os anos, neste dia, cumpro uma espécie de ritual. Uma homenagem qualquer. Preciso de rituais, sempre precisei. Mas hoje, após doze anos, sinto esse dia mais presente que nunca. Talvez seja um final de ciclo qualquer. Talvez tenha a ver com Saturno, esse Senhor do Karma, deus do Tempo.

Ainda não é tempo de” manejar as palavras" 1 e de poder dizer como tenho em mim essas tardes em que, deitadas na tua cama, de mãos dadas, rezávamos a um Deus que era só teu. De como conversávamos sobre o teu passado, sobre a minha infância, sobre a vida, numa total ausência de constrangimentos. De como nos ríamos de tudo apesar das tuas dores e da minha dor.
Ainda não é tempo de te dizer, Avó, como me ensinaste também o que é envelhecer. Como são tão mais bonitas as pessoas no princípio e no fim. Como estão tão mais próximas da verdade da vida quando sabem que são vulneráveis. E como se pode crescer sabendo isso. E tu conheceste-me, Avó. Conheceste-me no meu íntimo, sem necessidade de explicações ou de palavras.
A Vida e a Morte estarão separadas por um véu, Avó. Eu sei. Mas hoje preciso dizer-te que sinto a tua ausência. A tua ausência física. Que me dói a saudade de te abraçar. Que sinto ainda as minhas mãos percorrerem o teu corpo, no fim, de uma fragilidade impossível. E que as tuas mãos minha querida Avó, foram as mãos mais bonitas que alguma vez apertaram as minhas.

Mas ainda não é tempo. Ainda não é tempo de me embrenhar em palavras. Ainda não o conseguiria suportar.
Comprei uns sacos de areia colorida. Umas pedras, umas conchas. Um recipiente bonito.
Construirei algo que virá, com certeza, do coração da Memória.

1“[M]anejar as palavras, tomar-lhes o peso, explorar-lhes o sentido, é uma maneira de fazer amor, sobretudo quando o que se escreve é inspirado por alguém, ou prometido a alguém”. (Marguerite Yourcenar, in O quê? A Eternidade)

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Glosa de Natal

Marguerite Yourcenar in O Tempo esse Grande Escultor


A estação dos Natais comercializados chegou. Para quase toda a gente – fora os miseráveis, o que faz muitas excepções – é uma paragem quente e clara no Inverno cinzento. Para a maioria dos celebrantes de hoje, a grande festa cristã fica limitada a dois grandes ritos: comprar, de maneira mais ou menos compulsiva, objectos úteis ou não, e empanturrar-se a si e às pessoas da sua intimidade, numa mistura indestrinçável de sentimentos em que entram igualmente a vontade de dar prazer, a ostentação e a necessidade de se divertir. E não esqueçamos os pinheiros, símbolos antiquíssimos que são da perenidade do mundo vegetal, sempre verdes, trazidos da floresta para acabarem morrendo ao calor dos fogões, e os teleféricos despejando esquiadores na neve inviolada.
Embora não sendo nem católica (excepto de nascimento e de tradição), nem protestante (excepto por algumas leituras e influências de alguns grandes exemplos), nem mesmo cristã no sentido pleno do termo, nem por isso me sinto menos levada a celebrar esta festa tão rica de significados e o seu cortejo de festas menores, o São Nicolau e a Santa Lúcia do Norte, a Calendária e os Reis. Mas limitemo-nos ao Natal, esta festa que é de nós todos. Trata-se de um nascimento, de um nascimento como todos deveriam ser, o de uma criança esperada com amor e respeito, trazendo em si a esperança do mundo. Trata-se dos pobres: uma velha balada francesa canta Maria e José procurando timidamente em Belém uma hospedaria para as suas posses, sempre desprezados em favor de clientes mais ricos e reluzentes e por fim insultados por um patrão que “detesta a pobralhada”. É a festa dos homens de boa vontade, como dizia uma admirável fórmula que infelizmente já nem sempre se encontra nas versões modernas dos Evangelhos, desde a serva surda-muda dos cantos da Idade Média que ajudou Maria no parto até ao José aquecendo as fraldas do recém-nascido diante de um pequeno fogo, aos pastores cobertos de sebo mas julgados dignos da visita dos anjos. É a festa de uma raça tantas vezes desprezada e perseguida, porque é judeu o recém-nascido do grande mito cristão (falo de mito com respeito, e emprego a palavra no sentido dos etnólogos modernos, significando as grandes verdades que nos ultrapassam e de que precisamos para viver).
É a festa dos animais que participam no mistério sagrado desta noite, maravilhoso símbolo de que São Francisco e alguns outros santos sentiram a importância, mas que os cristãos comuns desprezam, não procurando neles inspiração. É a festa da comunidade humana, porque é, ou será dentro de dias, a dos três Reis cuja lenda quis que um fosse preto, alegoria viva de todas as raças da Terra levando ao Menino a variedade dos seus dons. É a festa da alegria, mas também da dor, pois que a criança adorada será amanhã o Homem das Dores. É enfim a festa da própria Terra, que nos ícones da Europa de Leste vemos tantas vezes prosternada à entrada da gruta onde o Menino nasceu, a mesma Terra que na sua marcha atravessa neste momento o ponto do solstício de Inverno e nos arrasta a todos para a Primavera. Por esta razão, antes que a Igreja tivesse fixado o nascimento de Cristo nesta data, ela era já, nos tempos antigos, a festa do Sol.
Parece que não é mau lembrar estas coisas que toda a gente sabe e que tantos esquecem.
1976
Mas o Natal, para além da sua complexidade simbólica e da sua adulta trivialidade comercial, é também a época da Dor da Ausência. A dor da perda de uma magia que a infância inscreveu em nós - nostalgia, a dor da ausência daqueles que faziam parte desse cenário mágico e feliz e que já não estão entre nós. A dor da ausência do seu abraço em carne e osso. Por isso, uma parte de mim pode dizer que não gosta do Natal, deste Natal que agora existe, assim, esvaziado do sentido que lhe dei.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

memória corpo mistério...

ma memoire sale - les chansons d'amour

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

um pequeno pormenor de um livro muito bonito


“O que já veio e ficou próximo, quereria tê-lo olhado demoradamente, porém esta sombra mortal que me atravessa empurrou-me, desequilibrou-me. Caí, e é não sei de onde que agora ouço erguer-se esta voz. Não quer negar, desprende-se. Diz como o sol queima e se pode morrer de sede em plena luz. Estende-me a água, a lama, o charco, a terra onde me deito.”

Silvina Rodrigues Lopes, in Sobretudo as Vozes

sábado, 21 de novembro de 2009

da intuição e da sabedoria - Sophia

Devia poder escrever cartas de despedida regularmente. Sem constrangimentos ou sentidos alheios à verdade das coisas. Cada vez que a fina crosta que me mantém acima dos meus abismos estala, ameaça ruir. Que importância tem que a continuidade seja um facto, se é irreal? - a ilusão da vida e da morte enquanto absolutos.

Ontem sorria. Sorria-vos de copo na mão, olhar periférico deambulando entre mim e cada um de vós. Ouvido à deriva por entre as várias conversas de modo a poder sorrir a tempo, a todas, que é a forma que o cansaço primordial tem de participar – um sorriso.

Havia uma familiaridade, apesar da sempiterna semi-presença. Encontrava-a mais nuns rostos que noutros, por uma certa honestidade – à falta de melhor palavra -, ou franqueza – palavra cuja sonoridade me desagrada. Mas ela provinha essencialmente de vós. Por um mecanismo misterioso que só o Tempo domina, aquele momento formava uma constelação com os anteriores, esparsos na linearidade a que chamamos tempo.

Mas a distância essencial não se ultrapassa. O muro de vidro gélido que só um verdadeiro abraço desfaz, não se quebrou. Os corpos não se tocaram. A palavra não veio. Vieram palavras. Palavrinhas. Palavras que nascem da necessidade quase dolorosa de atingir a sonoridade fundamental e que parece ficar sempre ao largo. Porque dessa estropiação da comunicação a palavra ausenta-se.

E a Evidência veio como um grito da alma - não, nunca mais! Não há como ali (aqui) ficar. A luz, cruel quando mostra todos os contornos das coisas quebrando-lhes o Encanto, desmistificando-lhe o que julgávamos ser Mistério. A lucidez dispensável.

Há um “nunca mais” sem porquê. Mais uma vez. A Vida pede-me isso. Cada vez mais – a Intuição do como sem a compreensão do porquê. E eu intuí. Intuí que, contrariamente ao que pensava, por vezes é preciso dizer, decididamente, adeus. Um adeus que é efectivamente nunca mais.

Nunca Mais

Nunca mais
Caminharás nos caminhos naturais.
Nunca mais te poderás sentir
Invulnerável, real e densa -
Para sempre está perdido
O que mais do que tudo procuraste
A plenitude de cada presença.

E será sempre o mesmo sonho, a mesma ausência.



Sophia de Mello Breyner Andresen

sábado, 31 de outubro de 2009

Dia de Finados

Marguerite Yourcenar in O Tempo Esse Grande Escultor

Uma criança que tenha nascido numa família católica da Europa Ocidental lembra-se de ao menos uma vez ter ido ao cemitério no Dia de Finados, por tempo certamente frio, triste e cinzento. Na véspera, era o Dia de Todos-os Santos, festa segunda de algum modo, que não se celebra como a Páscoa ou o Natal, com presentes e comezainas, mas que se sabia honrar aqueles mortos oficialmente subidos ao céu. Claro que havia milhares e milhares de santos. Mas havia também, sabia desde logo a criança, milhares e milhares de mortos com destino menos conhecido, e estas vinte e quatro horas do dia 1 de Novembro pareciam curtas para celebrá-los a todos. Mortos subidos ao céu, eles também, mas não beatificados, sem que portanto ficássemos totalmente sossegados a seu respeito, mortos com passagem pelo Purgatório ou para sempre no Inferno, mortos dos tempos pagãos, mortos de outras religiões, noutras partes do mundo, ou nestas. Mortos simplesmente, tão mortos como o cão ou a vaca que não reencontráramos nas férias e de quem nos tinham dito apenas que haviam estoirado.
No que me diz respeito, confundo essa longínqua visita ao cemitério com exposições de crisântemos, essas grandes bolas que enchem as sepulturas bem tratadas, por serem a única espécie que nessa estação oferecem as floristas, a não ser que se escolha uma dúzia de rosas que murcham depressa demais para fazer vista.
É certo que havia algumas pessoas de luto que pareciam mesmo tristes. Mas o que se via sobretudo (e os olhos de uma criança são impiedosos) era pessoas bem vestidas dizendo bem ou dizendo mal dos arranjos florais das outras sepulturas aí deixadas pelos proprietários de “concessões” vizinhas. E não esqueço o sobressalto de horror, tantas vezes sentido nos cemitérios em França, provocado pelas flores espetadas em cornucópias de papel, mortalhas em que irão apodrecer, com a etiqueta de um bom florista, lá postas por pessoas que não gostam nem dos mortos nem das flores, abandonando-as sem uma pinga de água ou sem as espalhar amigavelmente pela terra ou pelo mármore dos mortos. Tinham-se contentado com a compra dessa espécie de ramos – cartões-de-visita (o que é preciso tem de se fazer), pousando-os talvez, caso conservassem um resto de fidelidade aos usos piedosos, com um discreto sinal-da-cruz, antes de se afastarem logo que a decência o permitia, visto o tempo em Novembro não favorecer longas permanências nos cemitérios.
O que a criança, entre aborrecida e desagradada não sabia, é que estes ritos outonais se contam entre os mais antigos celebrados na Terra. Parece que em toda a parte o Dia dos Mortos se situa nesta estação, depois das últimas colheitas, quando o Sol descoberto dará supostamente passagem às almas estendidas à sua guarda. Da China à Europa Setentrional, o morto enterrado, muitas vezes com um tufo de ervas por cima, assegurava a fecundidade dos campos e protegia contra as incursões do inimigo, como os ossos do velho Édipo no seu Tholos de Colona. Hoje, no entanto, o seu retorno anual num momento em que a subida para os vivos é mais fácil, é ao mesmo tempo temido e desejado pelos seus descendentes. Todo o rito tem duas faces: oferecem-se de boa vontade as dádivas destinadas a assegurar a sobrevivência do morto, e também a neutralizar a nocividade que adquiriu ao tornar-se morto, mas espera-se que, passada a festa do reencontro, ele regresse ajuizadamente à sua morada de terra. Os ritos do Dia de Finados são ao mesmo tempo os do calafrio e os do amor. Na Finlândia, mostraram-me nesse dia postos indicadores e placas com nomes de quintas isoladas deslocados ou cobertos de panos, para evitar que os espíritos desorientados pudessem voltar a instalar-se nas suas antigas moradas. É um facto inconfessado e quase inconfessável que os mortos mais queridos se tornam ao fim de alguns anos, ou mesmo de alguns meses, intrusos na existência dos vivos, que mudou. Assim o quer, não tanto o egoísmo ou a ligeireza dos homens, mas inevitavelmente a lei da própria vida.
Esta regra das comemorações fúnebres outonais tem as suas excepções. Uma das mais belas festas dos mortos, o festival Bön, que é budista, realiza-se no Verão e consiste em largar no mar centenas de minúsculas urnas onde brilha uma lamparina, imagem da nossa longa e precária viagem para a eternidade. Talvez menos simbólicas, excepto que são também emblemas da luz perpétua que desejamos para os mortos, as lanternas que se alumiam na noite de Natal nos cemitérios da Escandinávia ou da Alemanha, como quem procura fazer participar amigavelmente os que já não estão na alegria e nas acções de graças dos vivos. Nunca mais se esquecem, depois de as ter visto uma vez a caminho da aldeia iluminada, essas chamazinhas reflectidas no gelo do chão ou iluminando os cristais da neve. Uma outra excepção à regra das festas outonais é a celebração quase laica do Decoration Day, que se realiza nos Estados Unidos no fim de Maio e consiste de pôr flores nas sepulturas. Do ponto de vista da horticultura, a época é bem escolhida: não só há muitas flores, como o entusiasmo dos jardineiros amadores se pode estender dos seus jardins para o cemitério. Na Nova Inglaterra, região onde a Primavera é tardia, faz-se muitas vezes o primeiro piquenique da estação. Sem chegar ao costume de vários países islâmicos de beber e comer junto das sepulturas, a alegria dos vivos contém assim um pensamento em sua intenção.
Mas o verdadeiro Dia de Finados nos Estados Unidos é a mascarada burlesca e tantas vezes sinistra de crianças e adolescentes, o Halloween, outra festa do Outono, que se festeja na véspera de Todos-os-Santos, que é também véspera do primeiro dia do mês de Athyr do Egipto Antigo, dia do aniversário da morte de Osíris assassinado pelas forças do Mal e assim tornado deus dos mortos. Hallowed all: todas as almas sejam santificadas. Ninguém, salvo alguns eruditos, conhece o velho sentido etimológico da palavra nem liga este sabbat desordenado à festa dos mortos, mas as verdadeiras festas, que se encontram mais profundamente enraizadas no inconsciente humano, são as que se celebram sem saber porquê.
No Halloween ninguém vai aos cemitérios nem os decora. É um dia de alegria infantil, em que as mães preparam para os seus meninos máscaras ingénuas por vezes lúgubres: não deve haver americano que se não lembre do encanto com que um dia usou um chapéu de chamas do diabo, os bigodes e o rabo de um gato, ou o branco esqueleto em fundo de tecido preto, cândido prenúncio das metamorfoses. Assim ataviados, ou então de bruxa, de drácula, de fantasma embrulhado num lençol ou de super-homem, mas sempre com as suas máscaras, lá vão mendigar bombons de porta em porta, disfarçando a voz e ameaçando os vizinhos que lhes recusem os doces ou lhes dêem muito poucos. Crianças mais velhas e adolescentes juntam-se a eles ou organizam grupos rivais também mascarados e chegam muitas vezes a vias de facto: vidros partidos, ou sujos, ovos atirados às portas e às janelas, móveis de jardim partidos, postigos rebentados para roubarem a garrafa de uísque desejada. Por vezes, surgem partidas atrozes por parte de adultos irritados com as intrusões: falaram-me de bolos recheados com sabão da barba ou com fezes, ou até enfeitados com vidro moído. É também a noite em que as raparigas se arriscam mais, à saída de uma dança, a serem violadas ou até estranguladas atrás de uma sebe.
Nas estradas mudam os sinais de sítio como, por outras razões, na Finlândia. Por mais um regresso inconsciente a um antigo rito, uma árvore, sempre a mesma, no centro da terra onde moro, é coberta de tiras pelos rapazes, que as penduram em todos os seus ramos, mas que, por comodidade ou talvez por intenção escatológica, consistem de uma profusão de papel higiénico em vez das tiras de linho ou de papel de arroz próprias de outras civilizações. O que era fervor tornou-se troça. Neste grande país que se julga materialista, estes vampiros, estes fantasmas e esqueletos do carnaval de Outono, ignoram o que são: espíritos de mortos à solta que as pessoas alimentam para os enxotar com um misto de brincadeira e medo. Os ritos e as máscaras são mais fortes do que nós.
1982

hello wind


Hoje o amanhecer foi cinzento, húmido e nebuloso. Foi neste cenário que caminhei pelas ruas deste bairro, agora meu, e que me pareceu cristalizado numa aura nocturna.
Depois de umas horas de leitura que roubei ao sono, na esplanada habitual, um menino de boné e camisa clara veio sentar-se na minha mesa, à minha frente. Levantei a cabeça do livro e ele olhava-me com uns olhos penetrantes e cara séria. Parecia sondar-me. É difícil aguentar o silêncio de uma criança que nos fita e saiu-me um “olá”, seguido da pergunta mais palerma: que idade tens? Quatro anos, respondeu o pequeno. Perguntei-lhe logo de seguida o nome, como se tivesse infringido uma hierarquia qualquer na importância das coisas. Rúben, respondeu. E em seguida, perdendo o ar sério e recuperando a expressão que julguei adequada à sua idade, factor que me fez descontrair, disse-me num português tacteado: “O meu primo, morreu por causa de um guindaste. Bateu-lhe na cabeça, disse fazendo o gesto de um soco em si próprio, e ele foi para o céu. Eu não. Eu só vou quando for velhinho. E agora vou para ao pé da minha mãe, está bem?”, e foi.
Já não consegui ler mais. Outros textos se apoderaram de mim. Mas ele voltou. Com ar de criança, muito sorridente, voltou a sentar-se. Perguntei-lhe: gostas da mota? Ele respondeu: sim, mas não tenho dinheiro. Peguei numa moeda e dei-lhe. Enquanto andava na mota mesmo ao meu lado sorria-me e gritava-me adeus enquanto acenava. Quando acabou a mãe disse-lhe que fosse dar um beijinho à senhora e dizer obrigada. “Não é uma senhora, respondeu ele. É uma menina.” Deu-me um beijo e ofereceu-me a outra face apontando com o dedo e dizendo, dá. Disse-lhe que era muito simpático e despedi-me com um “até à próxima” que ele repetiu. E desapareceu na esquina com a mãe, sempre virado para trás a acenar com um sorriso.
Perguntei-me porque uma criança que nunca tinha visto se veio sentar na minha mesa neste dia e o porquê de ter escolhido este tema repelindo assim a minha conversa de circunstância. E a beleza com que falou do seu morto, da sua própria vida, que quer longa, e da sua própria morte como um reencontro.
Retomei a minha leitura e quando o corpo já reclamava fui comprar meias a um chinês perto de casa. É uma loja muito simpática. Ao contrário das outras que conheço, parece-se em tudo com um negócio de família. Tem um casal novo, cuja mulher espera uma menina no próximo mês, e um casal de mais idade, pais dele ou dela. O “ancião” não se parece em nada com os chineses secos e funcionais. Tem o ar de um verdadeiro ancião chinês de outros tempos, com um sorriso largo e sincero. Depois de ter pago, e de ter ouvido a conversa sobre o bebé que está para vir, o chinês mais novo disse: menina, venha aqui. Fui. Pegou numa pulseira cheia de símbolos e com aquela espécie de olhos que se associa a amuleto. Gosta mais de azul ou lilás, perguntou. Escolhi a lilás. Era um presente. Agradeci com ar incrédulo e desconcertado enquanto a família toda me olhava a sorrir.

E foi assim, sob a forma destas manifestações tão inesperadas, que a Morte e a Vida me visitaram hoje. Talvez como um desafio a reescrever em mim a relação com as mortes e com a vida. Não as mortes dos mortos. Não são os mortos que morreram que se tornam “intrusos nas nossas vidas”, na expressão da Yourcenar, mas sim as mortes daqueles que não morreram. Quando não conseguimos perceber que, guardando-os, apodrecem dentro de nós fazendo com que apodreçamos com eles e assim a nossa Vida. E que é um mal recíproco.
Volto à manhã e à deambulação até ao café, e na minha memória ela perde o seu ar nocturno. À cor cinzenta, à humidade e ao nevoeiro junta-se agora na minha memória um vento. Um vento forte daqueles que ferem o rosto, cortam a respiração mas que agitam tudo dentro de nós e nos desafiam a respirar de uma forma mais simples.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

uma nota à margem


"Tudo o que vejo parece-me um reflexo, tudo o que ouço, um eco distante, e a minha alma procura a fonte maravilhosa, pois tem sede de água pura.

Passam os séculos e gasta-se o mundo, mas a minha alma permanece jovem; vigia entre as estrelas, na noite dos tempos."


in O Tempo Esse Grande Escultor, no texto Em Memória de Diotima: Jeanne de Vietinghoff

Yourcenar transcreveu aqui uma nota feita pela aquela a quem o texto presta homenagem aquando da leitura de uma obra de Tagore

domingo, 25 de outubro de 2009

da minha viagem com Yourcenar



"Pressentimos que a confiança ingénua e a adesão impessoal se encontram em qualquer lado, naquelas profundezas da natureza humana em que o princípio da contradição [da não-contradição] não penetra"

in O Tempo esse Grande Escultor (O Sonho de Dürer)

fragmentos dispersos de uma Noite sem tempo

Deito-me na cama cheia de livros, um filme e um cansaço. Hesito entre a leitura, o filme e o sono. Estás comigo - sob a minha pele, sobre a minha pele; nos livros, no filme, nesta mão que me escreve tentando apreender-te. Cresceste dentro de mim, num excesso, ao ponto de explodires e te transformares numa matéria etérea que se disseminou por todo o meu ser. E dói - sabes, os traços do teu rosto desvanecem-se; a tua voz ecoa numa distância sem timbre; e as tuas mãos, meu amor. Nunca cheguei a ver as tuas mãos.

Gostava de saber como é ter um eu. Acordar de manhã com a simples tranquilidade ou inquietação de quem tem um dia pela frente.

Há uma parte de mim que não me pertence. Nasceu aquando do meu primeiro olhar-te - momento que vive como um lampejo de luminosidade no meu espírito: uma bolha de Luz amarela. Cuidei dela, numa decisão de que a vontade se absteve, como quem cumpre um destino. E quando a achei pronta quis entregar-ta. Não importava que não te conhecesse pois havia a Luz e uma sintonia adivinhada. Isso é amor, direi eu. Na distância. No silêncio. Na minha ignorância de ti. Na tua ignorância de tudo isto.

Somos vários nos vários papéis que nos cabem. Somos filhos, netos. Porventura pais. Somos amigos, colegas. Somos amantes. Mas uma Solidão prolongada leva todos os guiões para uma periferia da memória. Resta-nos o confronto com os vários papéis que nos cabem perante nós próprios.

Madalena

mudou a hora

sábado, 24 de outubro de 2009

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

a propósito de rosas, para ti

Variação sobre Rosas

Como as rosas selvagens, que nascem
em qualquer canto, o amor também pode nascer
de onde menos esperamos. O seu campo
é infinito: alma e corpo. E, para além deles,
o mundo das sensações, onde se entra sem
bater à porta, como se esta porta estivesse sempre
aberta para quem quiser entrar.

Tu, que me ensinas o que é o
amor, colheste essas rosas selvagens: a sua
púrpura brilha no teu rosto. O seu perfume
corre-te pelo peito, derrama no estuário
do ventre, sobe até aos cabelos que se soltam
por entre a brisa dos murmúrios. Roubo aos teus
lábios as suas pétalas.

E se essas rosas não murcham, com
o tempo, é porque o amor as alimenta.

Nuno Júdice, in Pedro Lembrando Inês

domingo, 18 de outubro de 2009

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

laços subtis

"Pensava, depois, que cada criatura humana entra, sem o saber, nos sonhos amorosos dos que com ela se cruzam ou a rodeiam, e que mau grado, por um lado, a obscuridade ou a penúria, a idade ou a fealdade daquele que deseja e, por outro, a timidez ou o pudor do objecto cobiçado, ou o facto dos seus próprios desejos se endereçarem talvez a outrem, cada um de nós se encontra, deste modo, aberto e entregue a todos."

Marguerite Yourcenar, in Como a Água que Corre - Um Homem Obscuro

terça-feira, 6 de outubro de 2009

o som do Outono

A chuva veio forte por aqui. Ontem enviou um telegrama e, hoje, apresentou-se com toda a sua pujança.
O Outono, no entanto, começou para mim há cinco dias - no momento em que, ao pisar uma folha seca de Plátano, pude ouvir a música preferida dos outonos da minha infâcia.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

uma homenagem a "La Negra" - (1935-2009)

A cantora folk argentina Mercedes Sosa, que lutou contra as ditaduras fascistas na América do Sul com a sua potente voz e se tornou numa lenda da música latino-americana, morreu hoje, aos 74 anos.
Carinhosamente apelidada "La Negra" - devido ao seu cabelo preto e à tez morena - Sosa foi igualmente chamada de “voz de uma maioria silenciosa”, tendo sempre lutado pelos direitos dos mais pobres e pela liberdade política.
A sua versão da música “Gracias a la Vida”, de Violeta Parra, tornou-se um hino para os esquerdistas de todo o mundo, nas décadas de 1970 e 1980, quando foi forçada a exilar-se na Europa e os seus discos foram banidos.
As suas imagens de marca eram o seu cabelo comprido e os seus ponchos, que usava durante os espectáculos ao vivo, fazendo ouvir a sua voz poderosa.
Nas décadas de 1960 e 1970, Sosa foi uma das expoentes máximas do politizado movimento Nuevo Cancionero, que quis levar a música folk de regresso às suas origens.
Politicamente, Sosa foi membro do Partido Comunista e as suas simpatias políticas acabaram por a obrigar ao exílio, em 1979 (ano em que Jorge Videla encabeçou a junta militar), depois de ter sido presa - bem como toda a sua audiência - durante um concerto na cidade universitária de La Plata.

texto retirado do jornal "O Público" de 5 de Outubro de 2009

Cancion con todos


domingo, 4 de outubro de 2009

A Salvação de Wang-Fô

Da obra de Marguerite Yourcenar, Contos Orientais

animação retirada do youtube

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

A palavra

Na Noite surgiram palavras e silêncios; vinham, perscrutavam-se, iam; de uma quase-sintonia vi brotar um mar, de um azul tão intenso que a linha do horizonte se retirou.
Fui, errante, pé ante pé sobre as palavras e os silêncios em busca d’A palavra.
E um barco ia-se esboçando – como o barco pintado na tela por onde Wang-Fô e Ling se evadiram do Imperador e das suas leis implacáveis.
Já em alto mar, o Silêncio. Tu tinhas permanecido em terra firme, mantendo as tábuas, a Lei.
E eu afundei-me nas águas profundas de um desejo, sem barco;
Agora sou água, meu amor. E todas as palavras se dissolveram em mim.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

revisitando a obra de Marguerite Yourcenar



Bosquezinhos Sagrados e Jardins Secretos


O viajante, sobretudo se é da variedade garden-club, consagra com frequência pouco tempo aos grandes bosques sagrados que circundam os templos budistas ou shintô. Assistidos cuidadosamente, embora não dispostos pela mão do homem, são muito vastos e desprovidos de ornamentos florais para pertencerem à categoria dos jardins. Em Ise, os veneráveis santuários shintô, delicadamente elaborados, cujo único material é a criptomera [cipreste japonês], são reconstruídos cada vinte e cinco, e a madeira envelhecida converte-se em talismã ou recordações para os peregrinos ou em cavacos para as braseiras do templo. Dispersas na Natureza como cabanas polinésias, por vezes tão sagradas que só imperador tem acesso a elas, as modestas estruturas parecem anãs ao lado das árvores gigantescas, irmãs vivas dos troncos que forneceram os pilares alisados e as vigas bem esquadradas das capelas. Contêm em si a divindade de que os nichos humanos parecem simplesmente albergar ou concentrar uma parcela. Em Nikko, o barroco delirante dos templos, testemunho do fausto dos shôgun, importa menos que a majestade dos bosques. Em Omiva, perto de Nara, o altar erguido ao fundo de uma vasta sala de culto não se perfila, como se esperaria, num santo dos santos nos objectos modelados pela mão do homem, mas directamente na montanha-deus. Em Miyajima, no Mar Interior, perto da fatal Hiroxima, o pórtico sagrado do grande santuário shintô, semi-imerso, abre-se para o mar.
Os mosteiros búdicos também cresceram nos parques, na maioria dos casos doações de imperadores ou de príncipes que aí se enclausuraram antes de morrer e cujos túmulos discretos ainda existem. Em Matsushima, no templo zen do Zuigan-ji, as altas criptomeras projectam uma paz crepuscular na meditação dos monges; no Hôryu-ji, pelo contrário, perto de Nara, as construções mais que milenárias sucedem-se ao longo das alamedas sem sombra e cobertas de saibro, em que aqui e ali cresce, solitária, uma grande árvore, perspectivas secas provenientes da China dos Tangs. Mas o Hôryu-ji, na sua origem, também se enquadrava no seio de uma solidão agreste ou silvestre: a vaga aglomeração muito próxima, as estradas e as garagens são do seu tempo. Essa poderosa natureza é interpretada diferentemente pelo génio budista e pelo shintô. Aqui, o receptáculo de oito milhões de kami, da terra, do ar e da água, aos quais por vezes nem atribuíram nomes, o local puro que, graças à eficácia benéfica do rito o homem também aceita; ali, o imenso universo submetido à miragem da mudança e da duração, por detrás do qual o comtemplador descortina o Vazio, como por detrás das nuvens, o céu. O Kokedera, em Quioto, fechado por todos os lados, mas fundido, dir-se-ia, na natureza ambiente, parece a meio caminho entre a vegetação rasteira e sagrada e o jardim simbólico em que cada forma exemplifica um conceito. “Lutai sem descanso; todas as formações são perecíveis”, dizia o Buda moribundo. Os jardineiros que passam e voltam a passar meticulosamente as suas vassouras pelas quarenta e quatro variedades de musgos do Kokedera parecem obedecer a essa injunção: eliminam piedosamente o mínimo raminho, a mínima folha caída naquele mar verde que foi inicialmente, há séculos, um jardim de areia.
Mesmo no Ryôan-ji, o ilustre jardim das pedras quase usado à força de ter sido contemplado por visitantes, carregado de tantas hipóteses explicativas quantas podem suportar algumas pazadas de areia e alguns rochedos, está encerrado num parque em que se erguem livremente árvores e uma garça real espreita à beira de um tanque sobre um ramo morto. O amplo Byôdo-in, com o seu pequeno lago em que se reflecte o santuário, alongava-se outrora por trinta hectares ao lado do violento rio Uji. Antes de pertencer a um templo, constituiu o prazer de um príncipe ou de um alto funcionário da era Heian. Os jardins do Pavilhão de Ouro e os do Pavilhão de Prata, adjacentes às construções da Quioto moderna, foram concebidos como refúgios em plena solidão; apenas alguns degraus separam a paisagem engenhosamente composta do Pavilhão de Prata de uma colina de vegetações quase virgens. Neste país em que oitenta e cinco por cento do território se compõem de maciços acidentados e encostas eriçadas de pinheiros, refúgio tradicional de macacos, porcos-espinhos, génios de nariz pontiagudo e anacoretas, os impressionantes mosteiros do Kôyasan e do Hieisan constituem fortalezas silvestres.

Hortus conclusus; os mais belos “jardins japoneses” propriamente ditos datam, como o e a cerimónia do chá, do século XIV até princípios do século XVI. São de obediência zen. Renunciantes, ou por vezes voluptuosos, concebera, as cascatas límpidas que se precipitam nas rochas, os lagos cuja forma imita a do carácter chinês que significa coração, mas as plantas pendentes e a propagação dos musgos impedem que se observe com clareza que esse nível das águas é uma caligrafia. Ergueram esses montículos argilosos cujos níveis realçam o efeito do luar, e fizeram cortar essas árvores de maneira a imitar as torções do vento. Os shôgun Ashikaga, pouco dotados para o poder, mas maravilhosamente inclinados para as artes e prazeres do século, fizeram do Pavilhão de Ouro e do Pavilhão de Prata refúgios fora da capital devastada pelas guerras civis, fome e peste; decerto os mesmos flagelos impeliram, ou mantiveram, os fiéis para a paz dos conventos e dos jardins zen. Graças a um estranho paralelismo, mas frequentemente observável, em tempo em que a Europa e a Ásia pareciam separadas uma da outra, o momento em que a suave austeridade zen impregna todas as artes no Japão, desde o teatro à horticultura, é também aquele em que os místicos da Renânia e da Flandres, nos seus mosteiros semiprotegidos dos horrores do tempo, praticam a “teologia negativa”, ou seja, especulações muito próximas das do budismo.
É igualmente a época em que os pintores flamengos pintam nos jardins fechados, sob árvores de fruta ou entre as rosas, santas e anjos, enquanto no Japão os virtuosos do jardim compõem o equivalente de mandalas hindus, não já na seda ou no papel de arroz, mas na própria terra, um microcosmo mineral e floral encerrado entre paliçadas de bambus e muros baixos. Habituados como estavam a meditar sobre a relatividade das coisas, os monges amarelos viram nos rochedos do Ryôan-ji não apenas um símbolo de resistência, mas os outros cimos das montanhas da China e da Índia; através de uma espécie de metáfora invertida, as linhas circulares traçadas na areia foram vagas; um tanque figurou o oceano. Os jardins herméticos do poeta e do pintor cristãos são Paraísos ou então emblemas da virgindade de Maria, enquanto os do monge zen atestam simultaneamente o melancólico “Ah!” das coisas e a budeidade oculta no fundo deles. Para os adeptos de seitas mais populares do budismo, cada nenúfar é o lótus sagrado no qual ele espera renascer no país da Terra Pura.
Não surpreende que esses jardins de contemplação se tornassem para nós o espelho perfeito da alma japonesa – como o haiku, nascido mais ou menos na mesma época, em que todo o universo contido numa folha que treme ou uma rã que mergulha na água, nos parece hoje a forma suprema da poesia nipónica. Mesmo nas ruelas estreitas das cidades, por vezes apertadas entre duas casas à ocidental quase novas, embora já o não pareçam, nos três degraus húmidos que separam a sombra interior do exterior, dois ou três crisântemos em vasos, eriçados, muito conseguidos, ou pelo contrário rígidos de caule e de corola, símbolos da dinastia solar, dois ou três lírios na Primavera, em qualquer época um ou dois emblemas bonsais de perenidade conferem a essas existências citadinas um pouco de natureza estilizada e, não obstante, viva. A arte do jardim japonês encontra-se já inteiramente nesses vasos de crisântemos e bonsais.
Jardins exóticos, mas nãos de delícias, como os que se vêem nas miniaturas iranianas ou mongóis, de que a Índia conservou pelo menos vestígios. Ainda menos jardins de prestígio, como as avenidas de Versalhes, ou os terraços e escadarias monumentais dos jardins de Itália ou mesmo as longas perspectivas dos Tangs. Percorremo-los com dificuldade; as lajes desiguais que conduzem o visitante de um ponto ao outro dos jardins imperiais do Katsura, obrigam o passeante a partilhar a atenção entre o espectáculo que lhe é oferecido e o lugar onde pôr os pés. Sem margem para a mínima dúvida, os espaçosos jardins Heian e os dos shôgun serviram de cenário a festividades, algumas das quais ficaram lendárias pelo seu fausto e multidão que acudia. Não obstante, as pinturas da época mostram-nos sempre os convidados a conversar em pavilhões semifechados que se abrem simultaneamente para a paisagem e separam delas os seus ocupantes, ou ainda a ouvir música em embarcações que flutuam num lago aberto pela mão do homem.
A Natureza, aqui, é mais para ver do que para tocar. Não se vêem nos jardins japoneses namorados deitados na relva ou a tomar banho na fonte e ainda menos, se possível, o sentimento de descontracção e de indiferença que se apodera de todos nós em semelhantes locais, guarnecidos de bancos longos nos quais uma pessoa se estende ou as crianças e cães se perseguem na relva. Esses lugares estritos e delicados destinam-se sobretudo a ser contemplados do interior de uma casa de paredes móveis, sentado, de pernas cruzadas, na orla do pavimento liso, deixando absorver-se em si o crepúsculo ou o lugar. A parte do olfacto é assaz reduzida: os lírios, as peónias, os crisântemos, flores caracteristicamente japonesas, ou as cerejeiras ainda mais sumptuosas que as nossas, não dão frutos. As flores, com sagacidade, mas na aparência plantadas com negligência, não têm a abundância sensual dos nossos canteiros e respectivas guarnições, nenhum amante das flores, nem de resto, qualquer amante simplesmente conseguiria colher aqui os ramos abundantes de um Degas, de um Fantin-Latour ou de Breughel, o Jovem – semelhante prodigalidade seria sacrílega. As flores, tão estimadas, não o são somente por nós: discípulos ocidentais do ikebana, a arte japonesa das composições florais, notaram com frequência que a flor, antes de tomar o seu lugar num arranjo exacto e sóbrio, apenas é considerada pelo Mestre e seus alunos como um material. O bonsai, obra-prima nipónica de colaboração com a Natureza, é dobrado, podado, ávido de fazer a pouco e pouco dele a maravilha que durará séculos: é tratado com o mesmo rigor que um homem do bushidô [via do guerreiro, código de honra dos samurais].
Nada de menos nipónico que o gesto do escritor Yukio Mishima numa das mais belas e célebres das suas fotografias: esse homem absorvido numa rosa, o rosto apaixonadamente mergulhado numa corola como para a beijar ou comer, não corresponde ao que julgamos compreender da ilusória sensibilidade japonesa. Pelo contrário, no seu filme Patriotismo, Mishima oferece-nos por várias vezes um símbolo quase inquietante das posições recíprocas do homem e da Natureza em terras japonesas. Na modesta casa de uma ruela de Tóquio, onde o tenente e a esposa põem em prática o seu suicídio, ele, por uma questão de honra, para não sobreviver a amigos presos durante uma revolta, ela por fidelidade ao homem que se mata, vemos desenrolar-se o ritual das últimas carícias, a prece perante o altar doméstico e, por fim, a morte atroz do homem e o suicídio mais breve da mulher. No entanto, de vez em quando, o aparelho de tomadas de vistas desloca-se e observamos, no exterior, na estreita moldura do pequeno jardim que circunda a casa, um jovem abeto coberto de neve. Enquanto na residência humana se faz amor, reza, sofre e morre, a pequena árvore continua presente, assim como, também efémero, o seu manto de neve branca.


Marguerite Yourcenar, Uma Volta pela Prisão (cap.XII)

...

e um olhar perdido é tão difícil de encontar
como o é congregar ventos dispersos pelo mar


Ruy Belo

sábado, 26 de setembro de 2009

tudo é único




"Não se vê duas vezes a mesma cerejeira, nem a mesma Lua recordar um pinheiro. Todo o momento é último porque é único. No viajante, esta percepção agudiza-se pela ausência das rotinas falazmente tranquilizadoras próprias do sedentário, as quais fazem crer que a existência continuará por algum tempo como está."

Marguerite Yourcenar, Uma volta pela prisão (cap.I, Bashô na Estrada)

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

uma carta



A Vida, na sua sabedoria imensa, põe à nossa disposição toda a matéria de que necessitamos para nos reconstruirmos a cada instante. E o que é a reconstrução senão a hipótese de voltarmos a lugares sombra de modo a que os possamos iluminar.
Não temos que compreender tudo. Não temos sequer possibilidade, quando demasiado imersos mental e emocionalmente nas teias de uma situação, de engendrar uma compreensão. Não, nem sempre temos; o que, para determinadas naturezas, é extremamente doloroso. Mas “o tempo, esse grande escultor”, tem outras vias de apaziguamento. E o apaziguamento vence - temporariamente - a sombra (o que seria do ser humano sem sombra?).
É só deixarmo-nos ir. Aceitar. Aceitar Tudo - a queda livre; o despenhamento; o silêncio que se segue ao estrondo; as trevas; o desnorte; O caos.
Quis a Vida que a minha trajectória nestes dois últimos anos fosse um regresso ao antes e ao depois disso; levou-me pela mão a esses espaços para que me lembrasse como via antes e para poder ver o que não via quando os meus pensamentos se moviam em torno do círculo de giz. A Vida devolveu-me a liberdade e a leveza. E fui subindo pelos cambiantes da sombra. Voltei aos lugares onde caminhei de olhos fechados e vejo! Posso ver. E como gosto de poder ver.
Reescrevo esta carta, agora (dois anos depois, mas o que é o tempo?) que todo o ruído cessou, finalmente leve e liberta, finalmente com o distanciamento suficiente para encará-la como a última e serena comunicação, aceitando também que comunicação nem sempre é comunhão. Será contudo uma comunhão comigo.

“Obrigada pelo teu mail. Neste tempo suspenso em que tenho vivido, tempo de construção da Fuga nos escombros do Prelúdio, devolveu-me ao Tempo por um breve instante. Obrigada pelo Beethoven. É certamente um dos compositores que mais amo. Como te disse um dia, a Música dele, para mim, tem as suas raízes nos subsolos mais profundos que um ser humano tem possibilidade de suportar. Tudo começa e recomeça lá, sempre, numa espécie de caos primevo a que é urgente dar Forma, Ordem, Harmonia.
Depois de ter tocado a minha Avó pela última vez, de me ter despedido do seu corpo, na manhã do dia 17 de Dezembro de 1997, senti uma necessidade enorme de me sentar ao Piano e tocar o primeiro andamento da Sonata dita “ao Luar”. Ele é efectivamente uma espécie de meditação. Contém em si tudo – o luto e a despedida como Hino, um apaziguamento na dor mais profunda que, como tudo o que bate no fundo, tem o dom milagroso de se transmutar no seu contrário. E só depois dessa viagem/homenagem/louvor, entreguei o meu corpo e deixei que a minha alma entrasse por tempo indefinido no sono de que tanto necessitava. Foi essa a prova mais cabal do meu amor pela música desse homem que viveu no centro de uma Força imensa, ora sucumbindo, ora subindo com ela.
Fico feliz que estejas a conseguir viver aquilo que mais desejavas e felicito-te pelas tuas realizações. Que tenhas as celebrações que mereces junto dos teus familiares e amigos e que a tua vida continue a ser rica, cheia e feliz. Eterna e ternamente contigo.”

Explicit Deo Gratias

domingo, 20 de setembro de 2009

uniões (musicais) de facto

Hoje dominou o meu eu bahiano



Zélia Duncan e Paulinho Moska, em Carne e Osso



Simone e Zélia, num caseiro e delicioso ensaio de Amigo é Casa

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

um louvor à Vida



Gracias a la Vida, Mercedes Sosa

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

mi unicornio azul...se fue...

Mi unicornio azul ayer se me perdió
Pastando lo dejé y desapareció
Cualquier información bien la voy a pagar
Las flores que dejó no me han querido hablar.

Mi unicornio azul ayer se me perdió
no se si se me fue, no se si se extravió
Y yo no tengo más que un unicornio azul
Si alguién sabe de el, le ruego información
Cien mil o un millón yo pagaré
Mi unicornio azul, se me ha perdido ayer, se fue.

Mi unicornio y yo hicimos amistad
Un poco con amor, un poco con verdad
Con su cuerno de añil pescaba una canción
Saberla compartir era su vocación.

Mi unicornio azul ayer se me perdió
Y puede parecer acaso una obsesión
Pero no tengo mas que un unicornio azul
Y aunque tuviera dos, yo solo quiero aquel
Cualquier información la pagaré
Mi unicornio azul, se me ha perdido ayer, se fue.

Compositor, Silvio Rodriguez
Voz, Mercedes Sosa


sábado, 12 de setembro de 2009

...e contudo, há sempre lucidez!

Sei que todos os pensamentos que abrigamos só crescem porque os alimentamos;
Que te construo na exacta proporção do meu desejo – de ti(?);
Que me esgoto no acto lento e dilatado de te inventar.
Se estás presente – em gestos ou palavras, em sorriso ou alheamento – a maquinaria da minha imaginação bebe da tua presença toda a matéria subtil com que te moldo;
Se estás longe – em ausência, em silêncio – são Mnemósine e Eros que tomam as rédeas da imaginação;
gregos, amam o Enigma;
E quando o longe se dilata no Tempo, desespero por ver o espaço do Enigma sobrepor-se ao espaço do Mistério.

Creiro e a Pequena Ilha dos Seres Improváveis

Aqui, neste lugar especial, de acesso algo iniciático, como é próprio de todos os lugares especiais. Dei o mergulho purificador – o cíclico baptismo –, por entre as rochas, onde tudo evoca a presença do Mar Egeu. E vem-me à memória Mary – a criatura bizarra de Egina e as suas primeiras palavras em frente do Templo de Aphaia – My name is Mary and i am an egean girl, enquanto abria os seus fortes braços como que a convocar-nos antes de explicar a história do mesmo e o mistério que há na espuma das águas;
À minha frente, a Pedra da Anicha, onde sempre imaginei uma imensa vida povoada de fantasia – a pequena ilha dos seres improváveis, que o Sado, a Serra e o Céu alimenta. Também eu vivo um pouco por lá. Parte de mim, por entre os Faunos e as Nynphas, numa pequena ilha que os Poetas de todos os tempos escolhem e criam para os seus retiros.
Hoje vejo lá Safo e Alceu. Competem em subtilezas, num jeito muito grego, na poética do amor. Outros acabam de chegar. Alguns sem nome. Vêm beber o Ar e mergulhar nas Águas quando a Terra e o Fogo lhes pesam. E deixam que os abrace, abraçando neles todas as almas familiares espalhadas pelo Mundo.
As Sereias dançam em volta, ao ritmo do seu próprio cântico. Não há navios neste lugar; quem não vê na rocha a Ilha não as pode ouvir; e os Poetas, esses não lhes sucumbem porque já lhes sucumbiram – vivem as glórias e os abismos do seu Encantamento.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

...a resposta - um poema...

Que faço, cega e bastarda, num mundo
Onde cada um tem vista e tem pai,
Onde andam – por anátemas, por aterros –
As paixões! Onde o choro dos olhos
É - de resfriado!

Que faço eu, por costela e ofício ave
Canora! – virada em fio!, bronze!, Sibéria!
Pelas minhas visões eu vou – como pela ponte!
Vou pelas imponderáveis visões
Num mundo de pesos.

Que faço, primogénita e cantora,
Num mundo onde o mais negro – é cinzento!
Onde a inspiração se guarda na garrafa
Térmica! Que faço com esta desmesura
No mundo das medidas?!

Marina Tsietaieva in Depois da Rússia (Poetas, 3 – 22 de Abril de 1923)

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

da antiga sabedoria sobre força e fragilidade

“Os homens quando nascem são tenros e frágeis,
A morte torna-os duros e rígidos;
As ervas e as árvores quando nascem são tenras e frágeis,
A morte torna-as esquálidas e ressequidas.

O duro e o rígido conduzem à morte;
O fraco e o flexível conduzem à vida.

O exército forte não vencerá;
A grande árvore vergará.

A dureza e a rigidez são inferiores;
A flexibilidade e a fraqueza são superiores."

Lao Tse, Tao Te King, LXXVI

sábado, 5 de setembro de 2009

as mãos da alma... a alma nas mãos... o Milagre!

A verdadeira força está sempre numa certa fragilidade

assim como a verdadeira vida anda sempre a par com a morte

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

o sonho e o doce mistério da vida

“Igualdade do dom da alma e da palavra – é isso o poeta. Por isso não há poetas que não escrevam nem poetas que não sintam. Sentes mas não escreves – não és poeta (onde está a palavra?); escreves mas não sentes – não és poeta (onde está a alma?). Onde a essência? Onde a forma? Identidade. Indivisibilidade da essência e da forma – é isso o poeta. Eu prefiro, naturalmente, o que não escreve mas sente, ao outro que não sente mas escreve. O primeiro – quem sabe? – amanhã será poeta. Ou santo. Ou herói. O segundo (o versificador) não é ninguém. E o seu nome é legião.”

Marina Tsvietaieva in O Poeta e o Tempo



Fernando Pessoa, Poema do Menino Jesus

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

terça-feira, 1 de setembro de 2009

da Luz...

Algures entre os factos, entre os tempos,
a poesia da tua existência
Ilumina
como uma janela aberta para um (in)certo Infinito.

da errância da alma







Maria Zambrano, in A Metáfora do Coração e outros escritos

“O poeta não toma jamais uma decisão, é verdade. O poeta suporta unicamente este viver errante e como sem um lugar onde prender-se. Suporta o viver instante a instante, dependendo de outro a quem nem sequer conhece. Entrevê alguma coisa na névoa, e a isto que entrevê é fiel até à morte, fiel por toda a vida. E não lhe exige, como o filósofo, ver a sua cara. Não luta como fez Jacob com o Anjo. Aceita e até anseia ser vencido. […] Vagabundo, errante, não se decide nunca, por lealdade a obscuras divindades, com as quais nem sequer luta para lhes descobrir a cara. A poesia. Não se entrega como prémio aos que metodicamente a buscam, mas acorre a entregar-se aos que jamais a desejaram; dá-se a todos e é diferente para cada um deles. Certamente é imoral. É imoral como a própria carne.”

domingo, 30 de agosto de 2009

flâneur versus turista - simbologia versus causalidade




“O Sem Forma habita todas as Formas.
Eu canto a Glória das Formas”


Kabir (Poeta persa do século VI a.C.)




“As pessoas que perguntam constantemente “porquê?” são como os turistas que estão diante de um edifício a ler um guia e estão tão ocupados com a leitura histórica da sua construção, etc., que isso os impede de ver o edifício.” (Wittgenstein, Cultura e Valor, 65)


O turista é o contrário do flâneur. A sua luta primeira é contra o tempo, o santuário da atenção. Na ânsia de tudo conhecer sobre “um espaço que não é o seu”, sobre o que está aí, fora de si, estrangeiro, distinto, irredutível a / não co-essencial com a sua identidade que é um particular de coordenadas distintas, ele mediatiza a sua relação com o que está perante si. Recorre ao guia, ao método estabelecido que é feito da história da coisa e das suas histórias. Recorre também a um circuito de pontos relevantes.
O turista não se perde. Ele anda em grupos que, movidos pelos mesmos interesses de acumulação de factos e explicações estabelecem a cada momento a sua diferença face aos locais, aos monumentos, aos transeuntes. Espelham a sua identidade. E a visita tem um prazo, é delimitada no tempo (e no espaço), tem um final seguro, previsto. Ele não fica, não se detém. Volta intacto ao seu espaço. Traz, juntamente com a bagagem e os souvenirs, conhecimentos partilháveis com aqueles que lhe são “idênticos”. Volta com a ânsia de comunicá-los “aos seus”. E permanece idêntico a si próprio pois a demarcação é o seu limite. E, paradoxalmente, sempre com sede de novas viagens.

O porquê é assim a atitude do conhecimento (ou dos conhecimentos), da instrução. A distância que se coloca como princípio. A “objectividade científica”, em que eu permaneço – enquanto um dos termos da relação – definido, com limites que não estão nunca em causa, que nunca se jogam. A minha individualidade, a minha identidade, definem-se por esta imutabilidade do essencial.

Ater-se ao como, pelo contrário, implica simultaneamente coragem e confiança (se quisermos, confiança epistemológica). Implica uma abertura – a omnipresença da atenção, a contemplação. Implica a transformação do próprio espírito, dos seus movimentos que inscrevem novos desenhos, novas relações. E aí reside simultaneamente o risco e o essencial.
“Aquele que contempla segue vestígios, por isso aquele não é só obrigado a prestar atenção, é sobretudo obrigado a ter prestado já atenção: prática venatória que representa para Benjamin o grande arquétipo do estudo ocioso. Como os nove belos rapazes que caçavam por montes e vales, aquele que contempla, que se entrega à perseguição de vestígios, arrisca-se a sucumbir à sua aura.” (Molder, Semear na Neve, 59)
A imagem do caçador, enquanto aquele que segue vestígios, é assim um outro contraponto rico em relação à imagem do turista.
“Aquele que segue vestígios, aquele que persegue a caça, arrisca-se a transformar-se nela, arrisca-se a esquecer os enleios do sangue e do contrato, os cuidados maternos, descobre que já não pode submeter-se a nenhum desses doces constrangimentos.” (Molder, op. cit., 59)
Assim, o centrar-se no como, enquanto atitude verdadeiramente científica (Goethe), a perseguição de vestígios, exige a ruptura com “o velho estilo de pensamento”, na expressão de Wittgenstein, e que tem como principal referência o princípio da causalidade. Toda a noção de proximidade, tão operante na definição de uma identidade em termos históricos, fica subvertida quando nos envolvemos neste “novo estilo” de pensamento. A atenção ao facto, a perseguição de vestígios, exige viagens sem a causalidade como guia, como método. A proximidade não é um dado é uma descoberta que se revela num comprometimento com essa busca. Num comprometimento semelhante ao daquele que ama, como refere Benjamin no Prólogo à Origem do Drama Barroco Alemão: “E só este [o amante] pode testemunhar que a verdade não é desvelamento que destrói o mistério, mas antes uma revelação que lhe faz justiça.” (17)

Esta distinção goethiana entre o como e o porquê é, como temos vindo a ver, fundamental e as suas implicações são infindáveis, ecoando nas mais diversas dimensões da vida. O combate ao princípio da causalidade, como prática de exterioridade instaurada, que de certa forma lhe subjaz, pode ser lido na Máxima de Goethe:
“Le plus élevé serait: comprendre que les faits sont déjà théorie. […]“ (Máxima 575, in Écrits sur l’art, 14)
Mergulhar assim na obra (da arte como da natureza), atender à sua fisionomia, à sua organicidade, recusar a mediação feita através de toda a teoria – é nisto que consiste a exortação de Goethe, retomada por Wittgenstein, por Benjamin e expressa igualmente nas concepções de Gould.

“Cessez de vous écouter les uns les autres. Essayez tout au moins de vous faire une idée à vous de chaque partition. Et n’hésitez pas à vous y conformer. Ce n’est qu’après avoir formulé clairement cette idée, sans vous référer à quelque prétendue tradition d’interprétation qu’on essaie de vous imposer, que vous pouvez vous mettre à écouter les autres, collègues et maîtres.” (Gould, Écrits I, 110)
Este constante apelo a um comprometimento total, que deve ser lido no cruzamento com uma exigência profunda, também ela comum aos universos em questão, de autodesenvolvimento (indissociável de uma concepção de conhecimento como autoconhecimento), remetem-nos para uma dimensão simbólica.


O símbolo tem esse carácter desconcertante para o pensamento analítico, na sua acepção mais fundamentalista, de pertencer a dois mundos. De se afirmar na sua particularidade e, ao mesmo tempo, conter em si o universal. Ele convoca-nos para uma outra noção de proximidade, que não a proximidade da vizinhança do pensamento causal.
O símbolo exige, deste modo, a participação e a recriação por parte daquele que o acolhe. É nesta medida, que é uma nova perspectivação da dualidade sujeito/objecto e consequentemente da objectividade, que se coloca como exigência o autodesenvolvimento.

Em última análise, a personalidade, como a obra, na encruzilhada entre duas dimensões, está ela própria sujeita a esse movimento interno de definição, de equilíbrio, de novos equilíbrios.
O pensamento, centrando-se na própria coisa, deixa-se, de certa forma, condicionar pela sua forma própria, pelo seu ritmo. Há um movimento interno de vai-e-vém na própria coisa, decorrente dos seus vários níveis de sentido, que impede a sua apreensão num só fôlego. O movimento de respiração, intermitente, descontínuo, é o movimento de abertura, de descida e subida, que permite que a obra inscreva o seu movimento no espírito. O vai-e-vém é não só um vai-e-vém entre os vários níveis de sentido da obra, mas um vai-e-vem entre os movimentos do nosso espírito e os movimentos da própria obra. (Vemos também aqui como se joga a relação objectividade/subjectividade). É ainda este movimento que permite destruir a primeira imagem que fazemos da obra, a primeira impressão da relação empática. Para isso, diz-nos Benjamin, devemos renunciar num primeiro momento à totalidade, devemos descer aos pormenores, fragmentar a obra, mortificá-la.
Esta descida ao nível dos pormenores, mortificadora, fragmentadora, analítica, permite arrancar o objecto à sua cristalização numa configuração familiar – a sua falsa unidade. Esta é a função da análise conceptual, que não deve ser entendida como um fim em si. Ela tem como função última “salvar os fenómenos nas ideias”. E a ideia não é algo abstracto, não é o universal a que se chega como resultado de uma média estatística.


No entanto, negar a causalidade como princípio de pensamento não significa negar que cada acto, cada pensamento, cada atitude ou decisão tenham consequências, e que essas consequências sejam determinadas pela energia daqueles. Não significa negar que existe uma lei complexa de causa e efeito que rege o macro e o microcosmo. Neste sentido, e aceitando que existe, poderíamos mesmo dizer que há uma intuição correcta subjacente à explicação causal do mundo e das manifestações que o constituem – a intuição de que tudo está interligado, que não há acções (em sentido lato) neutras, e isso pode ser compreendido através de uma análise atenta do mundo e de nós próprios.

O pecado que enforma a materialização dessa intuição, a razão que a faz falhar completamente o alvo, é a pretensão de que tudo isto é claro, linear, de que tudo isto opera visível, descortinável num plano positivo, “objectivo”. E é esta assumpção que funda na sua essência as “disciplinas”, os métodos, e que constitui o critério de cientificidade dos mesmos.


(excerto de um trabalho sobre Benjamin, Goethe e Glenn Gould onde, a pressentida sintonia entre os universos destes três autores resultou num feliz e profícuo encontro)

...con(-)vocações...









Creio que a melhor crítica que se pode fazer a uma obra, seja ela de que natureza for, não é de todo uma “apreciação”, mas sim, dar uma resposta.
A apreciação é coagida por vários factores (entre os quais a linguagem gasta, os lugares comuns). É uma re-acção.
Uma resposta, pelo contrário, constitui uma acção. Ela implica no seu processo o ser todo inteiro de quem a produz, ultrapassando assim o universo restrito daquilo que deve ser dito numa apreciação. Ela ultrapassa os limites convencionais da “área” em que a obra se insere, a sua linguagem técnica – a horizontalidade do conhecimento (sem dúvida importante).
Uma resposta (quando o é) é dada pelo ser todo inteiro, a partir da sua individualidade (sempre mutável), do seu carácter e temperamento únicos, e constitui-se através de uma verticalidade autêntica. A verticalidade profunda resultante da polaridade entre os seus Abismos e o seu Céu. E neste tipo de comprometimento, é também a sua individualidade que está em jogo, inscrevendo-se na resposta e deixando que a obra inscreva nela os seus movimentos para a ampliar.
A forma da resposta é irrelevante. Uma resposta a um quadro pode ser outro quadro, uma poesia, uma música. Algo onde possamos ver, nós próprios neste comprometimento, como aquela obra tocou aquela pessoa, que dimensões de si despertou, o que lhe suscitou; que cordas de si fez vibrar.
E talvez o mesmo possa ser dito de uma pessoa.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

pérola do dia

Pessoa, cantado pela Ninfa

Deixo ao cego e ao surdo
A alma com fronteiras,
Que eu quero sentir tudo
De todas as maneiras.

Do alto de ter consciência
Contemplo a terra e o céu,
Olho-os com inocência:
Nada que vejo é meu.

Mas vejo tão atento
Tão neles me disperso
Que cada pensamento
Me torna já diverso.

E como são estilhaços
Do ser, as coisas dispersas
Quebro a alma em pedaços
E em pessoas diversas.

E se a própria alma vejo
Com outro olhar,
Pergunto se há ensejo
De por isto a julgar.

Ah, tanto como a terra
E o mar e o vasto céu,
Quem se crê próprio erra,
Sou vário e não sou meu.

Se as coisas são estilhaços
Do saber do universo,
Seja eu os meus pedaços,
Impreciso e diverso.

Se quanto sinto é alheio
E de mim sou ausente,
Como é que a alma veio
A acabar-se em ente?

Assim eu me acomodo
Com o que Deus criou,
Deus tem diverso modo
Diversos modos sou.

Assim a Deus imito,
Que quando fez o que é
Tirou-lhe o infinito
E a unidade até.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

a cada dia... o mundo













Rotina

Nuno Júdice in Pedro, lembrando Inês

Ao abrir a janela do quarto para outras
janelas de outros quartos, ao veres a rua que desemboca
noutras ruas, e as pessoas que se cruzam, no início da
manhã, sem pensarem com quem se cruzam
em cada início de manhã, talvez te apeteça
voltar para dentro, onde ninguém te espera. Mas
o dia nasceu - um outro dia, e a contagem do tempo
começou a partir do momento em que
abriste a janela, e em que todas as janelas
da rua se abriram, como a tua. Então, resta-te
saber com quem te irás cruzar, esta manhã: se
o rosto que vais fixar, por uns instantes, retribuirá
o teu gesto; ou se alguém, no primeiro café que
tomares, te devolverá a mesma inquietação
que saboreias, enquanto esperas que o líquido
arrefeça.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009



"Breves Mortes"



















Iconografias da alma

Por vezes
no lugar da minha alma
estás tu
e no lugar de ti
está a tua imagem.

domingo, 23 de agosto de 2009

...a todos os espelhos, sem tempo...





The Wedding-Feast in the Shrine of the Nymphs
Marc Chagall in Daphnis and Chloe





Ausência

Nuno Júdice in Pedro, lembrando Inês

Quero dizer-te uma coisa simples: a tua
ausência dói-me. Refiro-me a essa dor que não
magoa, que se limita à alma; mas que não deixa,
por isso, de deixar alguns sinais - um peso
nos olhos, no lugar da tua imagem, e
um vazio nas mãos, como se as tuas mãos lhes
tivessem roubado o tacto. São estas as formas
do amor, podia dizer-te; e acrescentar que
as coisas simples também podem ser
complicadas, quando nos damos conta da
diferença entre o sonho e a realidade. Porém,
é o sonho que me trás a tua memória; e a
realidade apreoxima-me de ti, agora que
os dias correm mais depressa, e as palavras
ficam presas numa refracção de instantes,
quando a tua voz me chama de dentro de
mim - e me faz responder-te uma coisa simples,
como dizer que a tua ausência me dói.

sábado, 22 de agosto de 2009

um momento

Gosto deste período da manhã. O lugar ainda não se encheu da rotina; agradável, por vezes, mas rotina. Os rostos mais próximos ainda não desfilam por aqui e posso desfrutar da minha solidão que é paz e silêncio no meio deste buliço.
Mas não há como não voltar ao como. De facto já não me interessam os porquês. Aqueles que grito apenas no transe da presença de Pã onde o desnorte me faz preferir a imediatez das perguntas às interrogações. Não, não quero perguntas. Não gosto que mas façam nem gosto de fazê-las. A horizontalidade é para ser vivida intuitivamente, caminhando, sem mapas nem guias. E das interrogações, das muitas interrogações, surge como resposta o passo, o gesto, senão firmes ou convictos, pelo menos serenos. De uma serenidade conquistada, apesar de precária. Uma serenidade em construção.
Mas como?, interrogo-me enterrando os pés no mais profundo da Terra e tentando manter a cabeça o mais próximo possível do Céu. Como?
A vida é relação. Com as várias dimensões de nós próprios e com os outros. E com os outros dos outros. E a interrogação, a verticalidade profunda e autêntica, comprometida, é a via da responsabilidade. O seu (nosso) pathos.

uma alusão...um lugar de mim...













LILITH

"Porque antes de Eva foi Lilith", lê-se num texto hebraico. A sua lenda inspirou ao poeta inglês Dante Gabriel Rosseti (1828-82) a composição de Eden Bower. Lilith era uma serpente; foi a primeira esposa de Adão e deu-lhe "glittering sons and radiant daughters" ("filhos esplêndidos e filhas radiantes"). Deus criou Eva e depois Lilith; para se vinga da mulher humana de Adão, instou-a a provar o fruto proibido e a conceber Caim, irmão e assassino de Abel. Tal é a forma primitiva do mito seguida por Rosseti. Ao longo da Idade Média, o sentido da palavra layil, que em hebraico é o mesmo qu "noite", foi-se transformando. Lilith deixou de ser uma serpente para se tornar um espírito nocturno. Por vezes é uma anjo que rege a procriação dos homens; outras vezes sao demónios que assaltam os que dormem sozinhos ou os que andam pelos caminhos. Na imaginação popular costuma assumir a forma de uma mulher alta e silenciosa, de soltos cabelos negros.

Jorge Luís Borges in O Livro dos Seres Imaginários

Lilith foi a primeira mulher, criada do mesmo barro que Adão e não da sua costela como Eva. Na Astrologia é a Lua Negra.

Noite

Assim a noite, o
céu vazio de estrelas, a própria
luz que te escorre dos olhos,
como lágrimas, encharca o lenço
que guardas no bolso do casaco.

E uma linha
de ecos frios baixa
no céu para onde já não
olhas, pesa-te nos ombros, e
obriga-te a esquecer
todas as ausências.

Nuno Júdice in Pedro lembrando Inês


Feliz Aniversário Fernando,
perturbador espelho, amigo

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Encontros












Os verdadeiros Encontros dão-se sempre no momento certo, ainda que um dos seus traços seja precisamente o de parecerem precoces ou tardios. Fora do contexto.
Porquê? – Porque um verdadeiro Encontro escava as coordenadas, fluidifica. Um verdadeiro Encontro dá-se sob o signo da Fénix.
Se o honrarmos, é Alquímico.

"Sou eu, não tenhas medo"

in O Meio Divino
de Pierre Teilhard de Chardin

Parece-nos tão natural o crescer que não pensamos em distinguir da nossa acção as forças que a alimentam nem as circunstâncias que favorecem o seu êxito. No entanto «que tens tu que antes não tenhas recebido?». Penetremos no recanto mais secreto de nós mesmos. Examinemos de todos os lados o nosso ser. Procuremos aperceber-nos com vagar do oceano de forças recebidas passivamente em que está como que imerso o nosso crescimento. Ora pois, talvez pela primeira vez na minha vida (eu, considerado como alguém que faz meditação todos os dias!) peguei na lâmpada, e deixando a zona, aparentemente clara das minha ocupações e das minhas relações quotidianas, desci ao mais íntimo de mim mesmo, ao abismo profundo donde sinto confusamente que emana o meu poder de acção. Ora, à medida que me afastava das evidências convencionais com que é superficialmente iluminada a vida social, notei que me escapava a mim mesmo. A cada degrau descido, descobria-se em mim um outro personagem, cujo nome exacto já não podia dizer e que já não me obedecia. E quando tive de parar na minha exploração, por me faltar o terreno debaixo dos pés, deparava-se-me um abismo sem fundo donde saía, vinda não sei donde, a onda a que me atrevo a chamar a minha vida. E então, perturbado com a minha descoberta, quis voltar á luz, quis esquecer o inquietante enigma no confortável ambiente das coisas familiares, – recomeçar a viver à superfície sem sondar imprudentemente os abismos. Mas eis que vi reaparecer diante dos meus olhos experientes, o Desconhecido de quem queria fugir. Desta vez, não se ocultava no fundo de um abismo: agora, dissimulava-se por detrás da multidão dos acasos entrecruzados de que é tecida a teia do Universo e a da minha humilde individualidade. Mas era realmente o mesmo mistério: eu identifiquei-o. O nosso espírito perturba-se quando tentamos medir a profundeza do Mundo abaixo de nós. Neste momento, como qualquer que quiser fazer a mesma experiência interior, senti pairar sobre mim a angústia essencial do átomo perdido no Universo. E se alguma coisa me salvou, foi o ouvir a voz evangélica, garantida por êxitos divinos, que me dizia, do mais profundo da noite: «Sou eu, não tenhas medo».

domingo, 2 de agosto de 2009

...do pânico...



















Mais uma vez me visitaste.
Senti a tua aura, ao largo e depois caí no frenesim da tua presença.
Tentei mais uma vez ver-te o rosto,
olhar-te nos olhos e interrogar-te.
“Porquê? Porquê?”,
gritei num transe convulso enquanto me tocavas a tua música impossível.
Sais por momentos, talvez para recuperar o fôlego.
E voltas, voltas sempre com a tua flauta demolidora.
Sei que gostas de contradições e extremos.
De impasses.
Passeias entre os paroxismos do desejo e do medo.
O que te atrai em mim, Pan?
Em que florestas me encontras?

segunda-feira, 27 de julho de 2009

…do amor, ou talvez não…






O que é o amor? - o tal fogo que arde sem se ver ou as águas profundas em que nos dissolvemos? Provavelmente tudo isso e nada disso









O Jogo das Interrogações
Nuno Júdice, in Cartografia de Emoções

Pergunto-te o que é o amor? E tu
dizes-me que o amor é perguntar-se por ele, e é
a dúvida que entra nessa pergunta
a que me dás a resposta, e a certeza
com que devolves a minha dúvida.

Acredito em ti. Nem o amor permitiria
outra coisa, nem conheço outra fé capaz de
misturar dúvida e certeza, ou se haverá
mãos mais hábeis do que as tuas para
fazer essa alquimia de corpo e alma.

Tenho, então, de saber que não pode ser
senão assim. A crença no teu amor só pode nascer
do meu amor; e se trocamos perguntas e
respostas, como trocamos sentimentos e olhares,
é porque o amor é um jogo de interrogações.

Afinal, dizes-me, sabias o que é o amor? E
eu respondo que não conheço as regras desse
jogo; que és tu quem tem as peças e o tabuleiro
onde nos procuramos, mesmo que já nos tenhamos
encontrado, no abraço em que tudo acaba e começa.

domingo, 26 de julho de 2009

...no limite...

“Mas como ser possível viver aí? Como aguentar o excesso divino? Todo o limite é irrespirável – mesmo o do espasmo amoroso, como o da amargura violenta, ou o da violenta alegria.
E no entanto, o mais doloroso do excesso não é talvez o que há nele de excessivo, mas sim o que há de instantâneo e de frágil. Porque se o homem é de mais para si, apenas nesse de mais ele é o homem verdadeiro.”

Vergílio Ferreira in Invocação ao meu corpo (Presença ausente)

sexta-feira, 24 de julho de 2009

sinais de silêncio no açúcar

Hoje, num pacote de açúcar:


“Haverá algo mais verdadeiro do que cantar sem música?”


Mulholland Drive, Club Silencio - Lhorando





Silêncio...

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Co-incidências - em três dimensões

Viagem

Um barco atravessou os teus olhos,
levando um porão de sonhos para o porto
do infinito.

Nuno Júdice


















L'Echo, Marc Chagall




E o silêncio...

domingo, 12 de julho de 2009

...e há sempre algo de novo debaixo do céu...

Tinha a sensação nítida de que o tempo parava bruscamente enquanto algo em mim arquivava aquela expressão/instante que de certo modo falhava em relação ao conjunto.
Depois o tempo prosseguia, sem ter em conta esse frame estrangeiro.
Creio que é de noite que algo em mim transporta essas imagens-falha para o atelier daquele que em mim esculpe os outros, as situações, e que reajusta as esculturas em função do novo facto, da falha. Assim, no outro dia, há uma nova imagem. E creio que este mecanismo pode ser dito de tudo, pelo que cada dia é sempre, efectivamente, um novo dia.

terça-feira, 7 de julho de 2009

A propósito da Maria João Pires ....

Há anos que estou para escrever algo sobre a Maria João Pires.
As razões: tudo o que ela tem representado na minha vida, enquanto pianista excepcional (a melhor dos que conheço, e conheço muitos, mas isso ficará para cozinhar mais tarde), enquanto pessoa excepcional que é, com uma visão própria daquilo que é a Arte e daquilo que é a Educação. Com uma Visão. E com a capacidade de pôr em prática essa Visão (basta conhecer o seu trabalho). Pelos momentos únicos que vivi em Belgais, momentos que tive o privilégio de viver não por ser “amigalhaça” ou por pertencer a um qualquer circuito fechado, mas simplesmente porque me dispus a ir.
Mas não é ainda desta vez que irei tentar dar forma a essa Luz que a Maria João Pires representa na minha vida (de pessoa, de professora,…). O meu propósito aqui não é de acção (construção), mas de reacção (desconstrução) e, por isso, muito menos digno. A desconstrução de alguns lugares comuns que me desgostam e, porque não dizê-lo, me irritam. O pretexto desta reacção foi um pequeno texto lido por acaso num blog qualquer ao qual fui atraída pela fotografia da Maria João Pires, e que está em sintonia com um monte de outros aglomerados de palavras publicados nas “opiniões” do Público. Não deixa de ser interessante, do ponto de vista de uma análise mais profunda, observar a reacção dos portugueses em situações deste tipo. Confesso que não consigo deixar de me surpreender com o patriotismo oco e artificial que é despoletado (ou espoletado para quem prefere) neste povo de brandos costumes, mesmo em alturas onde a má gestão da casa, a inversão de valores, a corrupção, o provincianismo e outras pragas nos invadem.
Centrar-me-ei numa frase: “Mais uma vez, há que separar a pessoa do talento que tem. Inquestionável, novamente.” O que é que isto quer dizer exactamente? Dever-se-á mesmo separar “a pessoa” do “talento”? Conhece, quem escreveu isto, essa dimensão da pessoa em questão? E o que é o seu “talento”? É inquestionável porquê? No contexto desse texto é óbvio que é inquestionável porque “todos” o reconhecem (diga-se, mais lá fora que cá dentro, o que também é sintomático). Saberá o autor desse aglomerado de palavras (as tais 100) avaliar o talento e a pessoa?
A liberdade de expressão, perdoem-me se quiserem, não é um valor em si. É um meio. Um precioso meio que, para ter valor, exige de quem dele usufrui conhecimentos mínimos para falar dos assuntos a que se propõe. Sem leviandades nem “caldeiradas”. A liberdade de expressão exige responsabilidade e, tanto maior, quando visa avaliar pessoas (mais que talentos).
Como também tenho que trabalhar, proponho para terminar que cada energúmeno (para utilizar a expressão do “autor”), que não sabe dos assuntos que fala, se cale e faça calar mais dois; ou, melhor, que se informe e faça informar mais dois, quando se trata de deitar abaixo pessoas. Este país ganharia com isso.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Sinais...

Acredito que a vida nos leva para onde devemos estar, por vezes por uns revezes súbitos, com aparências diversas – golpes de sorte ou grandes tragédias.

uma gota de água

"E - descoberta repentina: confessar-me verdadeiramente, até ao fundo da alma; confessar-te tudo de mim (para maior claridade: todo "o pecado" da tua presença em mim), em mim inteira, só o poderia fazer - contigo!
...As trevas não são o mal, as trevas são a noite. As trevas são tudo. As trevas são as trevas. A questão está em que não me arrependo de nada. Estas são - as minhas próprias trevas."

Marina Tsvietaieva in O Diabo

domingo, 5 de julho de 2009

Que toda a Luz que irradiaste te envolva agora e para sempre...

Da Dança

Paul Valéry, in Degas Dança Desenho






“Porque não falar um pouco da Dança, quando se trata do pintor das Bailarinas?
Gostaria de fazer uma ideia bastante nítida dela, e arranjar-me-ei como puder, diante de todos.
A Dança é uma arte dos movimentos humanos, daqueles que podem ser voluntários.
A maior parte dos nossos movimentos voluntários tem uma acção exterior como fim: alcançar um lugar ou um objecto, ou modificar alguma percepção ou sensação em um ponto determinado. São Tomás dizia muito bem: “Primum in causando, ultimum est in causato”.
Atingido o objectivo, terminada a actividade, o nosso movimento, que estava de algum modo inscrito na relação do nosso corpo com o objecto e com a nossa intenção, cessa. A sua determinação continha a sua exterminação; não se podia nem concebê-lo nem executá-lo sem a presença e o concurso da ideia de um acontecimento que fosse o seu termo.
Esse tipo de movimento efectua-se sempre segundo uma lei de economia de forças, que pode ser complicada por diversas condições, mas que não pode deixar de reger o nosso dispêndio. Não se pode nem imaginar acção exterior terminada, sem que certo mínimo se imponha à mente. Se penso em me dirigir da Étoile ao Museu, não pensaria nunca que posso também realizar o meu desígnio passando pelo Panthéon.
Mas há outros movimentos cuja evolução não é excitada, nem determinada, nem possível de ser causada e concluída por nenhum objecto localizado. Nenhuma coisa que, alcançada, traga a resolução desses actos. Cessam apenas mediante alguma intervenção alheia à sua causa, à sua figura, à sua espécie; e, em vez de estarem submetidos a condições de economia, parecem, ao contrário, ter a própria dissipação por objecto.
Os saltos, por exemplo, as cambalhotas de uma criança, ou de um cão, a caminhada pela caminhada, o nado pelo nado, são actividades que têm como fim apenas modificar o nosso sentimento de energia, criar certo estado desse sentimento.
Os actos dessa classe podem e devem multiplicar-se, até que uma circunstância completamente diversa de uma modificação exterior que eles tenham produzido, intervenha. Essa circunstância será uma qualquer em relação a eles: cansaço, por exemplo, ou convenção.
Esses movimentos, que têm neles mesmos o seu fim, e que têm como fim criar um estado, nascem da necessidade de serem realizados, ou de uma ocasião que os excite, mas esses impulsos não determinam nenhuma direcção no espaço. Podem ser desordenados. O animal, farto da imobilidade imposta, evade-se, bufa, fugindo de uma sensação e não de uma coisa; extravasa-se em galope e travessuras. Um homem, em quem a alegria ou a raiva, ou a inquietude da alma, ou a brusca efervescência das ideias, libera uma energia que nenhum acto preciso pode absorver e esgotar na sua causa, levanta-se, vai, caminha a largos passos apressados, obedece, no espaço que percorre sem ver, ao aguilhão dessa potência superabundante…
Mas existe uma forma notável desse dispêndio das nossas forças, que consiste em ordenar ou organizar os nossos movimentos de dissipação.
Dissemos que, nesse género de movimento, o Espaço era apenas o lugar dos actos: ele não contém o seu objecto. É o Tempo, agora, que desempenha o papel mais importante…
Esse Tempo é o tempo orgânico tal como é encontrado no regime de todas as funções alternativas fundamentais da vida. Cada uma delas efectua-se por meio de um ciclo de actos musculares que se reproduz, como se a conclusão ou o término de cada um deles engendrasse o impulso do seguinte. A partir desse modelo, os nossos membros podem executar uma sequência de figuras que se encadeiam umas nas outras, e cuja frequência produz uma espécie de embriaguez que vai do langor ao delírio, de uma espécie de abandono hipnótico a uma espécie de furor. O estado de dança está criado. Uma análise mais subtil veria aí sem dúvida um fenómeno neuromuscular análogo à ressonância, que ocupa um lugar tão importante na física; mas que eu saiba essa análise não foi feita…
O Universo da Dança e o Universo da Música têm relações íntimas sentidas por todos, mas ninguém apreendeu até agora o seu mecanismo, nem mostrou a sua necessidade.
Nada é mais misterioso do que essa percepção tão simples de enunciar: a igualdade de duração, ou de intervalos de tempo. Como podemos estimar que ruídos se sucedem em intervalos iguais, soar batidas igualmente diferentes? E o que significa até mesmo essa igualdade afirmada pelos nossos sentidos?
Ora, a Dança, engendra toda uma plástica: o prazer de dançar irradia ao seu redor o prazer de ver dançar.
Dos mesmos membros compondo, decompondo e recompondo as suas figuras, ou de movimentos que se respondem em intervalos iguais ou harmónicos, forma-se um ornamento da duração, assim como da repetição de motivos no espaço, ou das suas simetrias, forma-se o ornamento extensão.
Esses dois modos, por vezes, transformam-se num outro. Vêem-se, nos ballets, instantes de imobilização do conjunto, durante os quais o agrupamento dos bailarinos propõe aos olhares um cenário fixo, mas não durável, um sistema de corpos vivos subitamente congelados nas suas atitudes, que oferece uma imagem singular de instabilidade. Os sujeitos estão como que presos em poses bastante distantes daquelas que a mecânica e as forças humanas permitem manter… ou imaginar outra coisa.
Daí resulta esta maravilhosa impressão: que no Universo da Dança o repouso não tem lugar; a imobilidade é coisa imposta, forçada, estado de passagem e quase de violência, enquanto que os saltos, os passos contados, as pontas, o entrechat ou as rotações vertiginosas são maneiras completamente naturais de ser e fazer. Mas, no Universo ordinário e comum, os actos são apenas transições, e toda a energia que por vezes neles aplicamos só é empregada para esgotar alguma tarefa, sem repetição e sem regeneração de si mesma, pelo impulso de um corpo sobre-excitado.
Assim, o que é provável em um desses Universos é, no outro, um acaso dos mais raros.
Essas observações são bastante fecundas em analogias.
Um estado que não se pode prolongar, que nos põe fora ou longe de nós mesmos, e no qual, contudo, o instável nos mantém, enquanto o estável só figura por acidente, dá-nos a ideia de uma outra existência perfeitamente capaz dos momentos que na nossa são mais raros, inteiramente composta pelos valores-limites das nossas faculdades. Penso no que se chama vulgarmente de inspiração
Existe algo mais improvável do que um discurso que seduz, que encanta o espírito a cada admissão das imagens e ideias que desperta, enquanto a sequência dos dignos sonoros e das articulações que o produzem aos ouvidos se impõe, impõe, suporta e prolonga o valor emotivo da Linguagem?
Mallarmé disse que a bailarina não é uma mulher que dança, pois ela não é uma mulher, e não dança.
Essa observação profunda não é somente profunda: é verdadeira; e não é somente verdadeira, isto é, fortalecida cada vez mais com a reflexão, mas é também verificável, e eu vi-a verificada.
A mais livre, a mais flexível, a mais voluptuosa das danças possíveis apareceu-me numa tela onde se mostravam grandes Medusas: não eram mulheres e não dançavam.
Não são mulheres, mas seres de uma substância incomparável, translúcida e sensível, carnes de vidro alucinadamente irritáveis, cúpulas de ceda flutuante, coroas hialinas, longas correias vivas percorridas por ondas rápidas, franjas e pregas que dobram, desdobram; ao mesmo tempo que se viram, se deformam, desaparecem, tão fluidas quanto o fluido maciço que as comprime, esposa, sustenta por todos os lados, dá-lhes lugar à menor inflexão e substitui-as na sua forma. Lá, na plenitude incompreensível da água que não parece opor nenhuma resistência, essas criaturas dispõem do ideal da mobilidade, lá se distendem, lá recolhem a sua radiante simetria. Não há solo, não há sólidos para essas bailarinas absolutas; não há palcos; mas um meio onde é possível apoiar-se por todos os pontos que cedem na direcção que se quiser. Não há sólidos, tampouco, em seus corpos de cristal elástico, não há ossos, não há articulações, ligações invariáveis, segmentos que se possam contar…
Jamais bailarina humana, mulher inflamada, embriagada de movimento, do veneno das suas forças excedidas, da presença ardente de olhares carregados de desejo, expressou a oferenda imperiosa do sexo, o apelo mímico da necessidade de prostituição, como aquela grande Medusa, que, por espasmos ondulatórios da sua torrente de saias engrinaldadas, que ela arregaça repetidas vezes com uma estranha e impudica insistência, transforma-se em sonho de Eros; e, subitamente, rejeitando todos os seus folhos vibráteis, os seus vestidos de lábios recortados, vira-se ao avesso e expõe-se, furiosamente aberta.
Mas imediatamente se recompõe, freme e se propaga no seu espaço, e sobe como um balão à região luminosa proibida onde reinam o astro e o ar mortal.”