segunda-feira, 27 de julho de 2009

…do amor, ou talvez não…






O que é o amor? - o tal fogo que arde sem se ver ou as águas profundas em que nos dissolvemos? Provavelmente tudo isso e nada disso









O Jogo das Interrogações
Nuno Júdice, in Cartografia de Emoções

Pergunto-te o que é o amor? E tu
dizes-me que o amor é perguntar-se por ele, e é
a dúvida que entra nessa pergunta
a que me dás a resposta, e a certeza
com que devolves a minha dúvida.

Acredito em ti. Nem o amor permitiria
outra coisa, nem conheço outra fé capaz de
misturar dúvida e certeza, ou se haverá
mãos mais hábeis do que as tuas para
fazer essa alquimia de corpo e alma.

Tenho, então, de saber que não pode ser
senão assim. A crença no teu amor só pode nascer
do meu amor; e se trocamos perguntas e
respostas, como trocamos sentimentos e olhares,
é porque o amor é um jogo de interrogações.

Afinal, dizes-me, sabias o que é o amor? E
eu respondo que não conheço as regras desse
jogo; que és tu quem tem as peças e o tabuleiro
onde nos procuramos, mesmo que já nos tenhamos
encontrado, no abraço em que tudo acaba e começa.

domingo, 26 de julho de 2009

...no limite...

“Mas como ser possível viver aí? Como aguentar o excesso divino? Todo o limite é irrespirável – mesmo o do espasmo amoroso, como o da amargura violenta, ou o da violenta alegria.
E no entanto, o mais doloroso do excesso não é talvez o que há nele de excessivo, mas sim o que há de instantâneo e de frágil. Porque se o homem é de mais para si, apenas nesse de mais ele é o homem verdadeiro.”

Vergílio Ferreira in Invocação ao meu corpo (Presença ausente)

sexta-feira, 24 de julho de 2009

sinais de silêncio no açúcar

Hoje, num pacote de açúcar:


“Haverá algo mais verdadeiro do que cantar sem música?”


Mulholland Drive, Club Silencio - Lhorando





Silêncio...

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Co-incidências - em três dimensões

Viagem

Um barco atravessou os teus olhos,
levando um porão de sonhos para o porto
do infinito.

Nuno Júdice


















L'Echo, Marc Chagall




E o silêncio...

domingo, 12 de julho de 2009

...e há sempre algo de novo debaixo do céu...

Tinha a sensação nítida de que o tempo parava bruscamente enquanto algo em mim arquivava aquela expressão/instante que de certo modo falhava em relação ao conjunto.
Depois o tempo prosseguia, sem ter em conta esse frame estrangeiro.
Creio que é de noite que algo em mim transporta essas imagens-falha para o atelier daquele que em mim esculpe os outros, as situações, e que reajusta as esculturas em função do novo facto, da falha. Assim, no outro dia, há uma nova imagem. E creio que este mecanismo pode ser dito de tudo, pelo que cada dia é sempre, efectivamente, um novo dia.

terça-feira, 7 de julho de 2009

A propósito da Maria João Pires ....

Há anos que estou para escrever algo sobre a Maria João Pires.
As razões: tudo o que ela tem representado na minha vida, enquanto pianista excepcional (a melhor dos que conheço, e conheço muitos, mas isso ficará para cozinhar mais tarde), enquanto pessoa excepcional que é, com uma visão própria daquilo que é a Arte e daquilo que é a Educação. Com uma Visão. E com a capacidade de pôr em prática essa Visão (basta conhecer o seu trabalho). Pelos momentos únicos que vivi em Belgais, momentos que tive o privilégio de viver não por ser “amigalhaça” ou por pertencer a um qualquer circuito fechado, mas simplesmente porque me dispus a ir.
Mas não é ainda desta vez que irei tentar dar forma a essa Luz que a Maria João Pires representa na minha vida (de pessoa, de professora,…). O meu propósito aqui não é de acção (construção), mas de reacção (desconstrução) e, por isso, muito menos digno. A desconstrução de alguns lugares comuns que me desgostam e, porque não dizê-lo, me irritam. O pretexto desta reacção foi um pequeno texto lido por acaso num blog qualquer ao qual fui atraída pela fotografia da Maria João Pires, e que está em sintonia com um monte de outros aglomerados de palavras publicados nas “opiniões” do Público. Não deixa de ser interessante, do ponto de vista de uma análise mais profunda, observar a reacção dos portugueses em situações deste tipo. Confesso que não consigo deixar de me surpreender com o patriotismo oco e artificial que é despoletado (ou espoletado para quem prefere) neste povo de brandos costumes, mesmo em alturas onde a má gestão da casa, a inversão de valores, a corrupção, o provincianismo e outras pragas nos invadem.
Centrar-me-ei numa frase: “Mais uma vez, há que separar a pessoa do talento que tem. Inquestionável, novamente.” O que é que isto quer dizer exactamente? Dever-se-á mesmo separar “a pessoa” do “talento”? Conhece, quem escreveu isto, essa dimensão da pessoa em questão? E o que é o seu “talento”? É inquestionável porquê? No contexto desse texto é óbvio que é inquestionável porque “todos” o reconhecem (diga-se, mais lá fora que cá dentro, o que também é sintomático). Saberá o autor desse aglomerado de palavras (as tais 100) avaliar o talento e a pessoa?
A liberdade de expressão, perdoem-me se quiserem, não é um valor em si. É um meio. Um precioso meio que, para ter valor, exige de quem dele usufrui conhecimentos mínimos para falar dos assuntos a que se propõe. Sem leviandades nem “caldeiradas”. A liberdade de expressão exige responsabilidade e, tanto maior, quando visa avaliar pessoas (mais que talentos).
Como também tenho que trabalhar, proponho para terminar que cada energúmeno (para utilizar a expressão do “autor”), que não sabe dos assuntos que fala, se cale e faça calar mais dois; ou, melhor, que se informe e faça informar mais dois, quando se trata de deitar abaixo pessoas. Este país ganharia com isso.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Sinais...

Acredito que a vida nos leva para onde devemos estar, por vezes por uns revezes súbitos, com aparências diversas – golpes de sorte ou grandes tragédias.

uma gota de água

"E - descoberta repentina: confessar-me verdadeiramente, até ao fundo da alma; confessar-te tudo de mim (para maior claridade: todo "o pecado" da tua presença em mim), em mim inteira, só o poderia fazer - contigo!
...As trevas não são o mal, as trevas são a noite. As trevas são tudo. As trevas são as trevas. A questão está em que não me arrependo de nada. Estas são - as minhas próprias trevas."

Marina Tsvietaieva in O Diabo

domingo, 5 de julho de 2009

Que toda a Luz que irradiaste te envolva agora e para sempre...

Da Dança

Paul Valéry, in Degas Dança Desenho






“Porque não falar um pouco da Dança, quando se trata do pintor das Bailarinas?
Gostaria de fazer uma ideia bastante nítida dela, e arranjar-me-ei como puder, diante de todos.
A Dança é uma arte dos movimentos humanos, daqueles que podem ser voluntários.
A maior parte dos nossos movimentos voluntários tem uma acção exterior como fim: alcançar um lugar ou um objecto, ou modificar alguma percepção ou sensação em um ponto determinado. São Tomás dizia muito bem: “Primum in causando, ultimum est in causato”.
Atingido o objectivo, terminada a actividade, o nosso movimento, que estava de algum modo inscrito na relação do nosso corpo com o objecto e com a nossa intenção, cessa. A sua determinação continha a sua exterminação; não se podia nem concebê-lo nem executá-lo sem a presença e o concurso da ideia de um acontecimento que fosse o seu termo.
Esse tipo de movimento efectua-se sempre segundo uma lei de economia de forças, que pode ser complicada por diversas condições, mas que não pode deixar de reger o nosso dispêndio. Não se pode nem imaginar acção exterior terminada, sem que certo mínimo se imponha à mente. Se penso em me dirigir da Étoile ao Museu, não pensaria nunca que posso também realizar o meu desígnio passando pelo Panthéon.
Mas há outros movimentos cuja evolução não é excitada, nem determinada, nem possível de ser causada e concluída por nenhum objecto localizado. Nenhuma coisa que, alcançada, traga a resolução desses actos. Cessam apenas mediante alguma intervenção alheia à sua causa, à sua figura, à sua espécie; e, em vez de estarem submetidos a condições de economia, parecem, ao contrário, ter a própria dissipação por objecto.
Os saltos, por exemplo, as cambalhotas de uma criança, ou de um cão, a caminhada pela caminhada, o nado pelo nado, são actividades que têm como fim apenas modificar o nosso sentimento de energia, criar certo estado desse sentimento.
Os actos dessa classe podem e devem multiplicar-se, até que uma circunstância completamente diversa de uma modificação exterior que eles tenham produzido, intervenha. Essa circunstância será uma qualquer em relação a eles: cansaço, por exemplo, ou convenção.
Esses movimentos, que têm neles mesmos o seu fim, e que têm como fim criar um estado, nascem da necessidade de serem realizados, ou de uma ocasião que os excite, mas esses impulsos não determinam nenhuma direcção no espaço. Podem ser desordenados. O animal, farto da imobilidade imposta, evade-se, bufa, fugindo de uma sensação e não de uma coisa; extravasa-se em galope e travessuras. Um homem, em quem a alegria ou a raiva, ou a inquietude da alma, ou a brusca efervescência das ideias, libera uma energia que nenhum acto preciso pode absorver e esgotar na sua causa, levanta-se, vai, caminha a largos passos apressados, obedece, no espaço que percorre sem ver, ao aguilhão dessa potência superabundante…
Mas existe uma forma notável desse dispêndio das nossas forças, que consiste em ordenar ou organizar os nossos movimentos de dissipação.
Dissemos que, nesse género de movimento, o Espaço era apenas o lugar dos actos: ele não contém o seu objecto. É o Tempo, agora, que desempenha o papel mais importante…
Esse Tempo é o tempo orgânico tal como é encontrado no regime de todas as funções alternativas fundamentais da vida. Cada uma delas efectua-se por meio de um ciclo de actos musculares que se reproduz, como se a conclusão ou o término de cada um deles engendrasse o impulso do seguinte. A partir desse modelo, os nossos membros podem executar uma sequência de figuras que se encadeiam umas nas outras, e cuja frequência produz uma espécie de embriaguez que vai do langor ao delírio, de uma espécie de abandono hipnótico a uma espécie de furor. O estado de dança está criado. Uma análise mais subtil veria aí sem dúvida um fenómeno neuromuscular análogo à ressonância, que ocupa um lugar tão importante na física; mas que eu saiba essa análise não foi feita…
O Universo da Dança e o Universo da Música têm relações íntimas sentidas por todos, mas ninguém apreendeu até agora o seu mecanismo, nem mostrou a sua necessidade.
Nada é mais misterioso do que essa percepção tão simples de enunciar: a igualdade de duração, ou de intervalos de tempo. Como podemos estimar que ruídos se sucedem em intervalos iguais, soar batidas igualmente diferentes? E o que significa até mesmo essa igualdade afirmada pelos nossos sentidos?
Ora, a Dança, engendra toda uma plástica: o prazer de dançar irradia ao seu redor o prazer de ver dançar.
Dos mesmos membros compondo, decompondo e recompondo as suas figuras, ou de movimentos que se respondem em intervalos iguais ou harmónicos, forma-se um ornamento da duração, assim como da repetição de motivos no espaço, ou das suas simetrias, forma-se o ornamento extensão.
Esses dois modos, por vezes, transformam-se num outro. Vêem-se, nos ballets, instantes de imobilização do conjunto, durante os quais o agrupamento dos bailarinos propõe aos olhares um cenário fixo, mas não durável, um sistema de corpos vivos subitamente congelados nas suas atitudes, que oferece uma imagem singular de instabilidade. Os sujeitos estão como que presos em poses bastante distantes daquelas que a mecânica e as forças humanas permitem manter… ou imaginar outra coisa.
Daí resulta esta maravilhosa impressão: que no Universo da Dança o repouso não tem lugar; a imobilidade é coisa imposta, forçada, estado de passagem e quase de violência, enquanto que os saltos, os passos contados, as pontas, o entrechat ou as rotações vertiginosas são maneiras completamente naturais de ser e fazer. Mas, no Universo ordinário e comum, os actos são apenas transições, e toda a energia que por vezes neles aplicamos só é empregada para esgotar alguma tarefa, sem repetição e sem regeneração de si mesma, pelo impulso de um corpo sobre-excitado.
Assim, o que é provável em um desses Universos é, no outro, um acaso dos mais raros.
Essas observações são bastante fecundas em analogias.
Um estado que não se pode prolongar, que nos põe fora ou longe de nós mesmos, e no qual, contudo, o instável nos mantém, enquanto o estável só figura por acidente, dá-nos a ideia de uma outra existência perfeitamente capaz dos momentos que na nossa são mais raros, inteiramente composta pelos valores-limites das nossas faculdades. Penso no que se chama vulgarmente de inspiração
Existe algo mais improvável do que um discurso que seduz, que encanta o espírito a cada admissão das imagens e ideias que desperta, enquanto a sequência dos dignos sonoros e das articulações que o produzem aos ouvidos se impõe, impõe, suporta e prolonga o valor emotivo da Linguagem?
Mallarmé disse que a bailarina não é uma mulher que dança, pois ela não é uma mulher, e não dança.
Essa observação profunda não é somente profunda: é verdadeira; e não é somente verdadeira, isto é, fortalecida cada vez mais com a reflexão, mas é também verificável, e eu vi-a verificada.
A mais livre, a mais flexível, a mais voluptuosa das danças possíveis apareceu-me numa tela onde se mostravam grandes Medusas: não eram mulheres e não dançavam.
Não são mulheres, mas seres de uma substância incomparável, translúcida e sensível, carnes de vidro alucinadamente irritáveis, cúpulas de ceda flutuante, coroas hialinas, longas correias vivas percorridas por ondas rápidas, franjas e pregas que dobram, desdobram; ao mesmo tempo que se viram, se deformam, desaparecem, tão fluidas quanto o fluido maciço que as comprime, esposa, sustenta por todos os lados, dá-lhes lugar à menor inflexão e substitui-as na sua forma. Lá, na plenitude incompreensível da água que não parece opor nenhuma resistência, essas criaturas dispõem do ideal da mobilidade, lá se distendem, lá recolhem a sua radiante simetria. Não há solo, não há sólidos para essas bailarinas absolutas; não há palcos; mas um meio onde é possível apoiar-se por todos os pontos que cedem na direcção que se quiser. Não há sólidos, tampouco, em seus corpos de cristal elástico, não há ossos, não há articulações, ligações invariáveis, segmentos que se possam contar…
Jamais bailarina humana, mulher inflamada, embriagada de movimento, do veneno das suas forças excedidas, da presença ardente de olhares carregados de desejo, expressou a oferenda imperiosa do sexo, o apelo mímico da necessidade de prostituição, como aquela grande Medusa, que, por espasmos ondulatórios da sua torrente de saias engrinaldadas, que ela arregaça repetidas vezes com uma estranha e impudica insistência, transforma-se em sonho de Eros; e, subitamente, rejeitando todos os seus folhos vibráteis, os seus vestidos de lábios recortados, vira-se ao avesso e expõe-se, furiosamente aberta.
Mas imediatamente se recompõe, freme e se propaga no seu espaço, e sobe como um balão à região luminosa proibida onde reinam o astro e o ar mortal.”

Café Müller

sábado, 4 de julho de 2009

Os gestos do pensamento: Pina Bausch

Por José Gil, in Movimento Total, O corpo e a dança






"Se há um autor que fez do paradoxo um meio de criação de movimentos, foi com certeza Pina Bausch. Como ela própria diz a propósito da interpretação de uma qualquer situação de uma das suas peças: “Pode sempre ver-se também o contrário”; ou ainda: “O que acho que está bem é uma pessoa poder ver de certa maneira e outra de uma maneira completamente diferente”.
Estas visões múltiplas não formam uma espécie de polissemia (simbólica ou não) que carregaria as obras de Pina Bausch de um sentido particularmente rico. A multiplicação dos pontos de vista possíveis segue as direcções que a própria peça induz: divergem, opõem-se ou contradizem-se, independentemente dos gostos objectivos do espectador. São feitos para não convergirem.
Quando, numa cena a dois, a bailarina corre para o seu par, embate violentamente contra ele, abraça-o e é a seguir repelida, recua de novo e volta a precipitar-se sobre ele para o beijar, etc. – é uma situação paradoxal, com vários sentidos divergentes, que é assim criada. Não é: “Os dois pontos de vista são possíveis”, mas: “Os dois (ou três, ou quatro) sentidos do acontecimento coexistem no próprio acontecimento e constituem o seu sentido”.
A composição de Café Müller, por exemplo, obedece inteiramente à lógica do paradoxo. Quando uma personagem procura o seu lugar próprio (o seu território) no café, há um bailarino que afasta as cadeiras, abrindo-lhe caminho; mas, ao mesmo tempo, retira-lhe toda a possibilidade de se sentar, faz o deserto à sua volta, deixando-o sem qualquer apoio. Cercada, sitiada do lado de fora das cadeiras, a clareira aberta no espaço do café transforma-se para a primeira personagem no lugar da sua solidão e da sua perda.
Outra cena: uma mulher encontra um homem. Abraçam-se. Um outro homem aparece e começa a desprender metodicamente os braços da mulher do corpo do seu par, coloca os braços deste último de maneira a poder receber a mulher deitada, pega nela e depõe-na nos braços assim arranjados. Sem forças para a segurar, o par da mulher deixa-a cair por terra. A cena repetir-se-á várias vezes, enquanto a música de Purcell envolve de sublime esses corpos com gestos de amor subitamente esvaziados.
O paradoxo atravessa toda a obra de Pina Bausch. O que é o seu Tanztheater? Tem-se insistido demasiado no seu carácter bastardo: não se trataria nem de teatro nem de dança. Todavia deve dizer-se o contrário: a arte de Pina Bausch faz correr um fio que serpenteia entre todos os géneros de espectáculos (performances). Para uma só peça, pode convocar elementos provenientes do ballet clássico, da dança moderna, do music-hall, do circo, da dança “étnica”, do teatro de rua, da festa de salão ou da festa de feira. É uma espécie de patchwork – como se sabe, Pina Bausch, compõe, de resto, as suas coreografias à maneira de patchworks.
Sempre na fronteira de todas as artes do espectáculo, nem por isso concede menos um certo primado à dança. Porque a linha serpentina move-se, e esse movimento de orla constitui propriamente a dança de Pina Bausch (“Se a vontade de dançar acabasse, tudo o resto acabava também, penso eu”).
Como se imbricam os pedaços de patchwork, a dança e o teatro, em particular na construção de uma peça (Stück)?
Devemos analisar de perto aquilo a que se chamou o “método” de trabalho da autora. Eis uma descrição concreta: “Assim, hoje, ao começar os ensaios de um novo espectáculo, durante horas e horas, longas semanas e meses, Pina Bausch faz perguntas aos seus bailarinos. São pontos de partida secos e concisos, como telegramas. Cada ponto de partida, cada pergunta, cada tema proposto, nunca é por acaso que aparece. Dir-se-ia antes obedecer a um projecto, a um plano predeterminado. Pina Bausch não procede por tentativas, às cegas: pelo contrário, dá sempre a impressão de conhecer bem o seu fim, de saber aquilo que quer. A lista das perguntas possíveis é imensa: cada espectáculo nasce, essencialmente, das respostas que os bailarinos dão às várias centenas de perguntas que a encenadora lhes faz. As respostas, por escrito, todas recolhidas por Pina Bausch (que, com uma paciência de maníaca, preenche todos os dias, do princípio até ao fim, páginas intermináveis de notas), representam a primeira fase do trabalho: constituem o material de base, o suporte fundamental do desenvolvimento da peça. Sentada no meio dos seus bailarinos ela faz calmamente as suas perguntas. Ninguém é obrigado a responder. Quem sente vontade de o fazer levanta-se, põe-se diante dela e responde como entende: não existe qualquer limitação ou indicação sobre a maneira de responder. A resposta pode ser verbal ou gestual, pode reduzir-se a uma imagem muito simples ou, então, transformar-se numa sequência de dança improvisada; pode exprimir-se tanto por meio de uma só palavra como de uma longa narrativa. Seja qual for a resposta, o bailarino que a formulou deverá escrevê-la para não a esquecer e para reproduzi-la durante a fase seguinte – a montagem propriamente dita do espectáculo -, quando Pina Bausch o pedir. Pelo seu lado, ela regista as respostas de toda a gente, sem excluir nenhuma delas. Só mais tarde, terá lugar a escolha do material. Duas semanas depois, a encenação, na colagem que constitui o resultado final, montará uma selecção que recorre ao material recolhido durante, pelo menos, dois meses de ensaios”.
Leoneta Bentivoglio descreve a atmosfera das sessões de perguntas-respostas, as resistências do início, a recusa em responder por parte de alguns, a inquietação de todos, e depois o “levantar voo”, quando os bailarinos começam a compreender aquilo de que se trata.
As próprias sessões constituem um fenómeno de grupo original. Teremos de deixar de lado esse aspecto, ainda que essencial. Mas podemos perguntar-nos de onde vem o apego tão forte de alguns bailarinos ao grupo e à dança-teatro de Pina Bausch. Afirmam viver no seu interior experiências decisivas de “verdade”, de “identidade”, “experiências autênticas, profundas, pessoais”. Quando estão em cena, é a sua “verdade mais íntima” que se exprime. Pina Bausch, no entanto, não pára de afirmar que não faz terapia.
É como se o “método Bausch” fizesse vir à superfície camadas soterradas de emoções e de sentimentos que nenhum outro tipo de movimento (ballet, dança moderna – os dois domínios de onde em geral vêm os bailarinos da Wuppertal) – consegue alcançar.
Ora, este método de composição joga com dois elementos essenciais (outros são-no também – a música, os cenários, os adereços – que aqui não podemos analisar): a fala e o gesto.
O que tem esta fala que afecta tão profundamente os actores? Acabámos de ver como Pina Bausch procede. Chega de manhã, e propõe uma palavra-chave: “ternura”, ou um tema: “Montar uma armadilha a alguém”, ou uma pergunta: “Como é que você abre o seu ovo à la coque?”. Como constrói Pina Bausch, a partir de questões por vezes insignificantes, movimentos (gestos) tão carregados de emoção?
Há vários factores a considerar: primeiro, o que a encenadora retém do jogo de perguntas-respostas-associações de ideias e palavras ditas. De início, ela própria não sabe ainda para onde vai. Ainda que, como escreve Leonetta Bentivoglio, todas as perguntas pareçam obedecer a um plano pré-estabelecido, concebido com minúcia, a própria Pina Bausch declarou que não tem um ponto de partida. O que não impede que as primeiras imagens produzidas pelas respostas se desenvolvam numa vasta rede de relações e de gestos que “adquirem progressivamente uma lógica interior”.
Mas, de início, que procura ela? Ainda que tenha uma pequena ideia (chega com uma pergunta precisa), como constrói essa rede de gestos que desembocará na coreografia completa? “Os primeiros dias de trabalho, que representam o momento de arranque de cada nova produção, equivalem normalmente ao período mais fatigante. “A princípio Pina insiste, volta muitas vezes aos mesmos temas, repete-se, toma o seu tempo, está inquieta, receosa”, refere Janusz Subicz.
Em suma, tem uma ideia, mas limitada, reduzida quase exclusivamente a significações abstractas. A “hipótese” só se tornará uma ideia (de movimento) quando se desenvolver em associações de sentido, quando se ligar a gestos, quando os gestos e o movimento se exprimirem desde o começo em emoções.
Tudo isto poderia parecer um trabalho clássico visando chegar a gestos expressivos a partir de palavras e de improvisos. Mas, como observámos acima, a emoção irrompe imediatamente dos gestos de Pina Bausch. Não utiliza mediações: se as perguntas são tão numerosas, tal não quer dizer que proceda por meio de associações lineares de sentido. Pelo contrário: situa-se num estrato não-verbal que as palavras e as frases trazem consigo e que não é inconsciente nem simplesmente esquecido. É um estrato muitas vezes arcaico e infantil, mas que pode comportar também elementos muito recentes.
Tentemos precisar a sua natureza.
Uma palavra vem sempre rodeada de emoções não-definidas, de tecidos esfiapados de afectos, de esboços de movimentos corporais, de vibrações mudas de espaço. Forma-se uma atmosfera não-verbal que rodeia toda a linguagem. Quando Pina Bausch propõe “ternura” como palavra-chave, desperta nos seus bailarinos essa camada atmosférica não-verbal.
Não se trata do silêncio, mas de qualquer coisa que não é da ordem nem da ausência nem do “branco psíquico”, qualquer coisa que quereria falar e não pode. Qualquer coisa que passa entre a fala e o silêncio e é o murmúrio do corpo que compõe o seu sentido irradiante. Não o seu contexto, mas aquilo que toda a fala produz sobre as camadas não-verbais corporais ou psíquicas, ressonâncias sensações, afectos e movimentos de pensamento que não pensam nada. Não se trata de um “contexto” (o “contexto não-verbal da enunciação”, por exemplo), mas de qualquer coisa como um meio provocado, criado pela própria enunciação, e que penetra em todas as direcções daquilo que, no corpo, pode produzir sentido ou está ligado ao sentido.
Quando Pina Bausch associa tal frase a imagens – ou ainda, quando extrai algumas associações do conjunto das que os seus bailarinos fazem -, está atenta ao movimento de ligação das imagens, ou das imagens e dos gestos. É assim que se formam ramificações que constituirão pouco a pouco o nexo da obra. (Todavia, como ela própria diz, Pina Bausch interessa-se mais pelo que os homens fazem do que pela maneira como o fazem: o lado expressionista opõe-se aqui ao pós-modernismo americano). O que se visa não é o inconsciente, nem o subconsciente sequer. O que a fala atinge, a perturbação profunda que suscita, relacionam-se sem dúvida com os corpos virtuais de que somos constituídos, até ao interior do nosso próprio pensamento. Quando os bailarinos se precipitam sobre uma bailarina em Kontakthof, e a tocam de mil maneiras, esmagam-lhe o nariz, comprimem-lhe as faces, esfregam-se no seu corpo, puxam-lhe os cabelos, coçam-lhe o pescoço, estamos perante gestos absurdos, absolutamente estranhos e todavia, verdadeiros. A sua verdade vem do facto de serem gestos do pensamento.
Não estamos perante fantasmas, ou seja imagens ou representações que nascem no nosso espírito como expressão de um desejo recalcado. Coçar o pescoço desta mulher não é o que eu queria fazer (e não posso), mas o que acompanha, no plano dos gestos emocionais, a minha atitude e o meu pensamento quando estou diante dela. Digo então: o meu pensamento acaricia-a (porque há pensamentos acariciantes, com um ritmo e um movimento acariciantes); ou ainda: o meu pensamento afasta-me violentamente dela; ou: pensar nela é coçar-lhe o pescoço (como só as crianças podem fazer). A minha resposta a um “amo-te” apaixonado exprime-se melhor no gesto de deixar cair por terra a mulher que mo diz do que em qualquer réplica verbal que seja.
No plano dos corpos virtuais, estes gestos não ilustram metáforas. Há palavras que acariciam ou que coçam realmente o corpo de outrem – que coçam o seu pescoço e não um outro órgão. Tudo se passa a um nível microscópico, o das pequenas percepções: todo o pensamento, e em particular o que entra numa relação afectiva, é acompanhado de gestos virtuais que o próprio pensamento não poderia pensar (exprimir), e que exigem um corpo para se poderem dizer.
Assim o não-verbal que em Pina Bausch espreita sob as frases é o do impensável do pensamento (não o seu impensado), impensável que só uma géstica do pensamento pode exprimir. Já o dissemos acima: para Pina Bausch, as emoções são gestos. As emoções, mas também os sentimentos e todas as espécies de afectos: porque são forças que, de cada vez, compõem o mundo inteiro que a fala transporta consigo. E essas forças só têm um material concreto para as exprimir, o corpo com os seus gestos.
Em suma, toda a fala é um “acto de fala”. Toda a fala se prolonga em gestos virtuais. Quer dizer, toda a fala comporta múltiplos gestos.
Do mesmo modo que há um impensável do pensamento no interior do pensamento, existe também um “inactuável” no coração do gesto: gestos que queriam prolongar-se em grito, vozes que trazem consigo múltiplas vozes inarticuladas, gestos que continuam a convocar outros gestos como que para acederem à fala que continua a escapar ao acto. Por exemplo, as duas sequências, no filme O Lamento da Imperetriz, primeiro as pernas de uma mulher que vão e vêm em grande plano; depois, as pernas, sempre em grande plano, de um par que dança o tango. Este movimento das pernas está no limiar da fala.
É a este nível que Pina Bausch trabalha, o dos movimentos dos corpos virtuais que se desdobram na fala e noutros gestos. Por exemplo, à pergunta: “Que reacções tem quando alguém faz planos a seu respeito?”, é verosímil que as respostas deixem aparecer clivagens do sujeito, ou façam proliferar sujeitos divergentes. Cada bailarino dirá palavras ou fará improvisações às quais outras se virão associar. Cria-se assim uma multiplicidade de corpos virtuais nas vozes e nos actos virtuais que Pina Bausch procurará actualizar (é, no fundo, o que as crianças fazem na imanência dos seus actos às suas palavras).
A criação de multiplicidades é, ela própria, múltipla. Em primeiro lugar, não parte apenas de um corpo individual – quando, por exemplo, alguém diz “não estou bem comigo próprio”, instala-se imediatamente um duplo virtual que pode, por seu turno, proliferar. Cada corpo virtual é já uma multidão de corpos: os bailarinos, quando forma séries, agem como se estivessem ao mesmo tempo sozinhos e em grupo, Trata-se de uma impressão extremamente curiosa, extremamente paradoxal das séries de Pina Bausch: cada um por si, fechado no seu gesto-emoção, e todavia os actores-bailarinos formam massa, não como um só corpo que se mexe de uma maneira única ou como múltiplos corpos diferentes fazendo o mesmo gesto, mas como se cada corpo ressoasse sobre o que está diante dele numa curiosa dessincronização sincronizada (mas a mesma massa pode quase aglutinar-se, como acontece com as mulheres, em certos momentos de Barba-Azul). Eu diria que cada corpo se desmultiplica em todos os outros corpos como nos seus corpos virtuais actualizados (o que é nítido em Kontakthof, em Nelken, em Ouve-se Um Uivo na Montanha, por exemplo).
É compreensível que os membros da companhia de Wuppertal possam experimentar, ao dançarem, uma profunda impressão de “autenticidade” ou que julguem apropriar-se assim do seu “ser” mais escondido.
Por outro lado, o “método Bausch” acentua o vector exterior → interior, ou vector vertical do movimento. Como vimos, todo o movimento dançado comporta duas direcções: de fora para dentro – incidindo nos órgãos internos do corpo – e de dentro para fora, direcção a que chamámos “horizontal”. A primeira, em que assenta a dança-terapia) é redobrada, em Pina Bausch, pela sua maneira de extrair o gesto próprio da emoção mais escondida. Cada um dos bailarinos sente-se implicado até ao mais íntimo do seu ser.
No entanto, este “mais íntimo” é também o mais exterior, o mais visível e, paradoxalmente, o mais impessoal. Não é só todo o processo de criação que se desenrola diante do olhar de todos, como faz notar Leonetta Bentivoglio, mas a performance, ao iniciar uma série, faz também ressoar os gestos de um bailarino nos que o precedem e nos que lhe seguem. Os bailarinos desempenham, cada um deles, a sua emoção e a emoção dos outros. Proliferação paradoxal das singularidades – porque se trata de qualquer coisa que vale para todos os bailarinos. Longe de abolir a singularidade, o sentimento de grupo não faz senão acentuá-la.
De certa maneira, a produção das multiplicidades dá-se em todos os sentidos. Pina Bausch não se limita a actualizar a géstica do pensamento e das emoções que envolve em qualquer situação. As improvisações a propósito de um tema podem provocar associações de palavras que o gesto transporta consigo e que remetem eventualmente para outros gestos, outras palavras e outros pensamentos – que atraem outros gestos impensáveis (inexprimíveis) pela linguagem falada. E o mesmo se passa com o “inactuável” da acção e da emoção que só a fala pode libertar.
Eis uma espécie de contra-prova da ideia de que Pina Bausch trabalha ao nível do impensável do pensamento e do inactuável do acto. Em Nelken, Lutz Förster executa um solo onde soletra na linguagem dos surdos-mudos as palavras da canção The Man I Love. Três séries se cruzam ou correm paralelamente, por vezes com um certo desfasamento no tempo: série de gestos, série de palavras, série de notas de música. O impacto emocional da performance age por obliteração daquilo que deveria ser directamente exprimido e que se encontra paradoxalmente – e brutalmente – inibido. Em Pina Bausch, os gestos não dizem o inexprimível habitual das palavras. Pelo contrário, traduzem e repetem as palavras da canção e remetem para elas, sem irradiarem em direcção a outros gestos virtuais. Do mesmo modo, as palavras não dizem o inexprimível e o designável de uma gestual que quisesse falar, mas remetem, por seu turno, para o código dos movimentos dos braços e das mãos da linguagem dos surdos-mudos. As duas séries giram à roda em circuito fechado, o que é precisamente o contrário da relação gestos-palavras em Pina Bausch. Resta então a música que, absorvendo estes impasses, adquire magicamente os poderes bloqueados dos gestos e das palavras: emoção duplamente intensificada, como se dissesse por meio dos sons tudo aquilo que um surdo-mudo não pode exprimir (do seu amor). Emoção imediatamente transmitida ao espectador pelos impasses da palavra e do gesto, e o poder acrescido da melodia. É Pina Bausch ao contrário – quer dizer, Pina Bausch em estado puro.
Esta última não utiliza portanto de uma só maneira a relação palavra-gesto; e antes de mais, porque não constrói um tipo apenas de gestos. Na verdade, só se situa ao nível da “géstica do pensamento e da emoção” porque varia sem cessar, deslocando-se sobre vários planos expressivos. Os seus gestos podem assim parodiar os do ballet clássico ou reproduzir uma cena “real” de violência entre os dois membros de um par; podem sugerir os gestos do circo, bem como os dos jogos infantis; etc. O enxerto, a associação, o cruzamento, a sobreposição incessantes de inumeráveis tipos de gestos codificados e conhecidos tornam-se apêndices, variações e prolongamentos de um outro género de gestos virtuais – e também por esse lado Pina Bausch entra na esfera da géstica do pensamento.
O mesmo acontece com a fala. De facto, Pina Bausch mostra que as relações gestos-palavras se tecem a múltiplos níveis de sentido, de consciência e de acção. De onde a lógica-estilhaçada e rigorosa das suas peças-patchworks.
Se o seu trabalho difere da terapia, é porque visa, antes do mais, fabricar uma performance artística, ainda que o seu método raie os modos de proceder terapêuticos. Atinge camadas profundas do inconsciente (e do inconsciente do corpo) dos seus bailarinos, mas recupera a energia com fins mais formais. Uma vez que no grupo de Wuppertal “o trabalho e a vida se confundem” (como diz um dos bailarinos), a construção das formas não se distingue muito da pulsação da vida dos seus membros; mas o seu objectivo não é tratar patologias.
É certo que a derrapagem levando à confusão pode ocorrer facilmente. As peças não encenam temas centrais do mal-estar da civilização”? Não se limitam a indicar ou a comprovar o que vai mal, a violência, a crueldade, a solidão, a guerra, a barbárie inocente que atravessa as relações entre os homens, mas consagram-se também a descrever os mecanismos que as engendram e as desencadeiam.
Uma das singularidades da obra de Pina Bausch é a oscilação permanente entre processos de subjectivação que tendem a inteiriçar os corpos segundo modelos pré-fabricados, sempre os mesmos para toda a gente, e movimentos incessantes de devir que quebram esses modelos libertando forças que iriam, talvez, no sentido da formação de subjectividades singulares. Oscilação entre vectores de subjectivação e vectores de devires singulares.
As máquinas de subjectivação encontram-se por toda a parte no Tanztheater de Wuppertal: do andar sexy dos corpos das mulheres ou os gestos brutais da “virilidade” dos homens, às explosões terroristas que semeiam o pânico (Palermo Palermo), passando pelos gestos do ballet clássico (Nelken) ou a dança de salão (Walzer).
A expressividade teatral é muitas vezes usada em vista desse fim. Não ponhamos todavia de um lado teatro e subjectivação e, do outro, dança e devir (ainda que uma tal associação possa ter lugar). O método de composição é muito mais complexo: ambos, o teatro e a dança (mas também a música, tão importante) fazem emergir processos de subjectivação e múltiplos devires. Um certo devir-criança (Jan Minarik que enche balões – os devires-criança pululam nos jogos, nas mudanças bruscas de atitude corporal e de fala das personagens: estas tornam-se incessantemente crianças que se tornam outras personagens) surge através de um esgar que pode prolongar-se num movimento dançado.
A lógica geral visa a coexistência, a tensão e a passagem de um a outro dos pólos dos paradoxos – dançados ou representados ou representados-dançados. Ao mesmo tempo que um devir-mulher, um travestismento (que inteiriça o devir-mulher ou vai ao ponto de o negar); ao mesmo tempo que a doçura, a violência; ao mesmo tempo que pessoas vestidas para uma noite de gala, a nudez e um corpo. Uma mulher grita de dor e ri-se ao mesmo tempo. Enquanto um par dança ao som de uma melodia romântica, uma mulher só tapa a cabeça com as mãos e olha o vazio: o cúmulo da sensualidade kitsch coexistente com a subjectivação que resulta de uma máquina destinada a produzi-la (Café Müller).
Em O Lamento da Imperatriz, Pina Bausch revela um pouco o seu método de composição. O filme é feito de uma longa sucessão de cenas que poderiam ser do tipo dos “gags” do cinema mudo. Cada cena instala uma situação absurda (e portanto paradoxal): os personagens são sempre descontextualizados, por referência a situação normal correspondente à sua acção. Com o espelho pousado no chão, um homem barbeia-se na borda de um passeio de uma cidade atravessada por automóveis que regularmente o salpicam. Numa planície deserta, um homem carrega um pesado armário. Um anjo (Dominique Mercy com asas de anjo presas a um casaco) atravessa um rebanho de ovelhas, ao som de uma melodia mediterrânica. Na noite escura uma mulher corre com uma rapidez louca por uma floresta gritando: “Mummy! Mummy!”. Todas as imagens são descontextualizadas. É o insólito absoluto.
As próprias falas criam paradoxos: uma mulher embriagada canta pesadamente: “Não me surpreende que alguém morra diante dos braços do seu amante; o que me surpreende é só que alguém possa amar e continuar a viver”.
É essencialmente com devires que o filme joga. Os homens tornam-se mulheres (Dominique Mercy, na água, por exemplo), vestem-se, calçam-se como mulheres; ou disfarçam-se; uma mulher usa uma máscara de coelho; uma outra um tecido semelhante ao que cobre a cabeça da Esfinge do Egipto – e adopta a posição deitada, semi-nua, da Esfinge; graças a processos cinematográficos, de um rosto de mulher, levemente acariciado por um dedo, emana uma feminilidade extraordinária, luminosa – à qual sucede um outro grande plano de um outro rosto de mulher que chora. Processos de devires e pontos de subjectivação.
A violência, a impotência de amar dos homens, os dispositivos que inteiriçam os corpos opõem-se, em O Lamento da Imperatriz, aos devires-mulher, aos devires-animais, aos devires-elementos (o homem coberto de terra, o homem-lama), aos devires-mulheres das mulheres. Os meios (milieux) do devir são os elementos (a água, a terra, a neve, o vento), as roupas e o movimento. A descontextualização prepara os devires.
Há uma cena extraordinária de um devir-nu (nos múltiplos sentidos, sem dúvida, de “nudez”): através das janelas panorâmicas de uma grande sala de baile, vêem-se de longe pessoas bem vestidas que dançam. Mal se vêem: silhuetas longínquas. No instante seguinte, no mesmo lugar, corpos nus (de mulheres) deslizam de patins como se continuassem ainda a dançar. Vai-se do dispositivo de subjectivação ao devir-nu dos corpos; e é talvez a dança que provoca o devir.
Nunca há um estado definido em que se pare. Perguntamo-nos muitas vezes: estaremos perante devires-mulher ou travestis (que são criaturas do devir-mulher)? A velocidade do movimento dos personagens, e da passagem de uma cena a outra impede que o saibamos. Em Ein Trauerspiel, Jan Minarik senta-se de súbito na esplanada de um café, mostra uma perna calçada e vestida como a de uma mulher, mas musculada como uma perna de homem, fuma com uma longa boquilha feminina. Será uma mulher? Será um travesti?
O sexo indeterminado, esquivo, a homo – a bi - , a múltipla sexualidade passa de uma personagem e de uma cena, a outra personagem e a outra cena. O devir é também um devir-imagem da personagem – e isso pode indicar um processo de devir como processo de subjectivação.
A violência irrompe sempre e deixa o seu rasto, ainda que o regime das forças mude repentinamente. As bruscas mudanças, que são outros tantos devires, hesitam entre a catástrofe e o jogo infantil.
Como tudo se passa entre (o gesto e a fala, os gestos e a música, o movimento e a fixidez), não podemos separar o que cabe à dança e o que cabe ao teatro, no Tanztheater de Pina Bausch. Como tudo se passa entre devires e subjectivações, é o teatro que penetra a dança e a dança o teatro, de tal modo que as sequências mais nitidamente teatrais são ainda dançadas, e a dança sai muitas vezes de “pequenas cenas” que se aceleram e se metamorfoseiam em movimento dançado. “Entre” as duas coisas, zonas de indiscernibilidade, como diria Deleuze. Envolvendo todos os devires locais (e as zonas de indiscernibilidade), um grande movimento de devir-dança do teatro, e de devir-teatro da dança.
Estas zonas de indiscernibilidade sobrepõem-se – como paradoxos que encerrassem outros, como se nunca um movimento fosse puramente comum, simples, de sentido único.
Assim a violência representada pelos corpos transmite-se às tensões paradoxais, intensificando as emoções. De onde as reacções que com frequência as peças provocam nos espectadores: divididos entre emoções divergentes, ou até mesmo opostas, violentamente bloqueados entre duplos-impasses, choram e riem ao mesmo tempo, riem de escárnio ou revoltam-se, ou então agridem os actores atirando-lhes com toda a espécie de objectos.
Nunca se poderá, portanto, dizer o que Pina Bausch quer dizer: o seu paradoxo maior está aí, entre um estado de coisas, uma constatação intolerável da violência paradoxal do mundo em que se misturam o humor e a crítica, e o pathos em que ela mergulha muitas vezes o espectador, na sua impotência de falar, pathos do choque entre o riso e as lágrimas. Paradoxos de todos os paradoxos que engendra por seu turno o pathos, o que não pode viver senão na dor do paradoxo inexprimível pela linguagem.
Em suma, perguntamo-nos se a violência que Pina Bausch faz desabrochar não contamina afinal todo o movimento, imprimindo às peças uma atmosfera de abismo que acabaria por lhes dar um sentido, um sentido único que iria contra a própria lógica do seu trabalho. A menos que se trate da face de um outro paradoxo ainda…”

O Instante Pina Bausch (27 Julho 1940 - 30 Junho 2009)

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Esquisso

Trinta euros. Era acima daquilo que deveria gastar. Ficava sempre, num canto recôndito qualquer, essa sensação de infracção. Acho que era na cabeça. Só podia ser na cabeça, num local específico da cabeça.
Mas estava ali. A uns bons metros do palco mas ali, próxima do epicentro da magia. Aos poucos a sala foi enchendo. Muito aos poucos, pois a pontualidade não é uma virtude portuguesa. Quando a sala escureceu estava cheia e o desconforto começou a instalar-se. Ela entrou, as palmas abafaram a sua presença e o espaço transfigurou-se com o som insuportável do meu coração. A pulsação acelerava num crescendo que parecia levar à explosão. Comecei a transpirar e a sentir-me desfalecer. Tirei os óculos, fechei os olhos. O concerto já tinha começado. Enquanto olhava para a distância que me separava de um corredor de fuga, sussurrei “não me estou a sentir bem”. Tomaram-me o pulso, disseram-me que estava muito acelerado, que eu estava toda suada. Pedi que parassem. Disse que já estava a controlar-me e isso ajudou. Toda a primeira parte do concerto foi esta música dionisíaca e o meu debate em busca de forma. Uma forma qualquer. Para o meu corpo se manter. Depois do intervalo, do ar fresco e da água, a magia tranquila mas exausta.
No regresso, em direcção a minha casa, meia-noite e qualquer coisa, vejo-a. Numa paragem de autocarro, sozinha. Fiquei parada ali, naquele lugar, naquele tempo enquanto o carro me levava. Não podia continuar a noite como se não a tivesse visto. Despedi-me. À porta. “Não consigo, preciso de ficar sozinha”, disse. E a crise de pânico foi uma desculpa aceitável para aquele sorriso triste e para mim também.
Já tinha conseguido atenuar o seu rosto. Um pouco. E tudo voltou naquele instante. Esse todo complexo feito de um sentimento que jamais conseguirei compreender.
Pela primeira vez o meu corpo tinha se entregue sem expectativas nem contexto.
E foi tão bom. Era tão bom enquanto durava.
Não és tu a razão deste meu mal-estar. Não és tu, como não foi ela. O mal-estar sou eu. O mal-estar é o meu olhar sobre o mundo, sobre a vida. O mal-estar é o excesso. É a falta. A inevitável falta. O mal-estar é esta minha doença de absoluto.
Havia um desejo imenso. Coisa de pele, de sexo, de suor, de lava.
Havia também poesia. Noites na praia, nascer do sol com flamingos e barcos antigos, num cobertor. Havia o pequeno-almoço na esplanada ao pé de casa e o sono que se saciaria depois, numa inversão total do ritmo quotidiano.
Mas em mim a cisão sentia-se. “Eu era simples demais para ti”, disseste-me mais tarde, quando te libertaste para outros perfumes.
Tenho um detector de abismos. Quem vive os abismos detecta-os. Odeia-os e ama-os. Com a mesma força. Foge deles correndo na sua direcção. E mais uma vez…
“O amor é visto como uma daquelas rosas que os catálogos de jardinagem britânicos apelidam de ‘repeat-flowering’. Assim que a rosa murcha, basta arrancá-la, para logo nascer outra. O amor é uma experiência repetitiva, cíclica. Não há o Grande Amor. Há sucessões de amores, de tamanho médio ou pequeno, que despontam assim que o anterior murcha. Não é por acaso que o advérbio mais utilizado na poesia de amor arcaica significa ‘de novo’.” Frederico Lourenço, in Grécia Revisitada (Safo, Anacreonte, Íbico: Amor à Machadada)
E se o tempo for mesmo um lugar?
Tu, porque corres num desespero alegre como se os ponteiros fossem reais? O que tanto queres deixar de ti por aqui? Que marcas imortais procuras inscrever nesta terra desolada? Corres feliz? Corres cansada?
Tu, porque te sentas nos dias como se já cá não estivesses? Porque desististe de te sentir vivo, tu que tens como gémeo o excesso?
E eu? Porque vivo eu saltando de impasse para impasse?
Que circuito fechado é este em que teimo em viver? Passo mil vezes pela mesma rua e mil vezes caio no mesmo buraco. Evito-o? Não.
E no entanto há sempre parte de mim que me observa em queda. Parte de mim que subiu pela ponte de um olhar luminoso. Um olhar familiar. Um olhar que me salva enquanto eu não lhe sucumbo.
Bem-haja essa doce e subtil presença

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Parfois, à la fin, on doit garder un simple parfum et... se taire

Numa tarde, numa sala, um poema dela, teu, ... e agora também um pouco meu...

O ÚLTIMO CERCO

Um odor antigo penetrava no quarto.
Apenas a recordação, possivelmente,
ou um rio feito noite de Julho
pela janela aberta. Encerrou numa gaveta
os assuntos concluídos e descobriu
no tampo da mesa um risco novo.
Nos seus dedos pairava ainda a sensação
do corpo que deixara atrás. O equilíbrio,
nada de contraditório ou opressivo
enquadrava o rosto. No espelho, lia-se
a cama e a camisa.
Ficou pendurado num sorriso longo, secreto
para si mesmo: "é vontade ou apenas gratidão?"
E na cadeira, só, sentado, mediu exactamente
a sua íntima inocência.

Ana Maria Ferreira in
Arquipélagos da Memória,
a Torre de Babel e outras histórias

...e isto sempre fui eu, dizes-me...