sábado, 21 de novembro de 2009

da intuição e da sabedoria - Sophia

Devia poder escrever cartas de despedida regularmente. Sem constrangimentos ou sentidos alheios à verdade das coisas. Cada vez que a fina crosta que me mantém acima dos meus abismos estala, ameaça ruir. Que importância tem que a continuidade seja um facto, se é irreal? - a ilusão da vida e da morte enquanto absolutos.

Ontem sorria. Sorria-vos de copo na mão, olhar periférico deambulando entre mim e cada um de vós. Ouvido à deriva por entre as várias conversas de modo a poder sorrir a tempo, a todas, que é a forma que o cansaço primordial tem de participar – um sorriso.

Havia uma familiaridade, apesar da sempiterna semi-presença. Encontrava-a mais nuns rostos que noutros, por uma certa honestidade – à falta de melhor palavra -, ou franqueza – palavra cuja sonoridade me desagrada. Mas ela provinha essencialmente de vós. Por um mecanismo misterioso que só o Tempo domina, aquele momento formava uma constelação com os anteriores, esparsos na linearidade a que chamamos tempo.

Mas a distância essencial não se ultrapassa. O muro de vidro gélido que só um verdadeiro abraço desfaz, não se quebrou. Os corpos não se tocaram. A palavra não veio. Vieram palavras. Palavrinhas. Palavras que nascem da necessidade quase dolorosa de atingir a sonoridade fundamental e que parece ficar sempre ao largo. Porque dessa estropiação da comunicação a palavra ausenta-se.

E a Evidência veio como um grito da alma - não, nunca mais! Não há como ali (aqui) ficar. A luz, cruel quando mostra todos os contornos das coisas quebrando-lhes o Encanto, desmistificando-lhe o que julgávamos ser Mistério. A lucidez dispensável.

Há um “nunca mais” sem porquê. Mais uma vez. A Vida pede-me isso. Cada vez mais – a Intuição do como sem a compreensão do porquê. E eu intuí. Intuí que, contrariamente ao que pensava, por vezes é preciso dizer, decididamente, adeus. Um adeus que é efectivamente nunca mais.

Nunca Mais

Nunca mais
Caminharás nos caminhos naturais.
Nunca mais te poderás sentir
Invulnerável, real e densa -
Para sempre está perdido
O que mais do que tudo procuraste
A plenitude de cada presença.

E será sempre o mesmo sonho, a mesma ausência.



Sophia de Mello Breyner Andresen