domingo, 28 de junho de 2009

A uma alma familiar

Amo o teu insustentável excesso
a tua transparência pura
e o teu limite.

Entre os tempos

Há conversas que se tecem por entre os dias, que se compõem de pequenos avulsos: gestos, palavras, olhares.
Há conversas que começaram há muito mas que é um toque, subtil, que as reescreve no tempo dando-lhes cor, som, forma, história.
Não sei ao certo quando começou a nossa conversa. Mas guardo em mim, viva, a esplendorosa cor do primeiro olhar.

Instantâneo da Fuga

Não me apresentes perguntas,
nada que implique o pensamento.
Concede-me apenas um momento
em que eu possa ser Resposta.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Do Fernando e para o Fernando, com Ternura


A sua irmã, pela sua doce voz, na manhã deste dia que se anunciava triste.

O Istmo

O organdi da saia amarrotado
e um navio, ao longe, envolto em fumo.
A bailarina chora e há um deck
onde passeia um jovem mal pintado
e se servem refrescos de mentol.

O barco ao longe é o fumo do cigarro.
O organdi, papel sacrificado em prosas,
líricos bocados de viagens e suor
aos arquipélagos perdidos na memória.

Da Juventude

I

Na sossa solidão, na nossa casa,
à beira de uma porta quase aberta,
enquanto a nossa mãe tecia a estrada
que recusar seria a nossa perda.
Assim na quietude que só espera
o fogo de um olhar o gesto impuro,
a paz era uma dor e uma quimera
a contornar o medo do futuro.


Metaformose

Um dia, meu amor, virei toupeira
e fiz um cerco subterrâneo às violetas.
Era intenso o desejo de comê-las
mas comendo, não podia ser toupeira.
Então voltei ao pé de ti e fiz-me gente
o que foi a mesma coisa que perder-te.

Ana Maria Ferreira
in Arquipélagos da Memória,
a Torre de Babel e outras histórias.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Absolutos

Não me dêem edifícios
Dêem-me uma porta
ou uma janela
ainda que para parte alguma.

Apenas pela invocação
da passagem
da viagem
do milagre.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Ítaca

Quando partires de regresso a Ítaca,
deves orar por uma viagem longa,
plena de aventuras e de experiências.
Ciclopes, Lestrogónios, e mais monstros,
um Poseidon irado - não os temas,
jamais encontrarás tais coisas no caminho,
se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime
teu corpo toca e o espírito habita.
Ciclopes, Lestrogónios, e outros monstros,
Poseidon em fúria - nunca encontrarás,
se não é na tua alma que os transportes,
ou ela os não erguer perante ti.

Deves orar por uma viagem longa.
Que sejam muitas as manhãs de Verão,
quando, com que prazer, com que deleite,
entrares em portos jamais vistos!
Em colónias fenícias deverás deter-te
para comprar mercadorias raras:
coral e madrepérola, âmbar e marfim,
e perfumes subtis de toda a espécie:
compra desses perfumes quanto possas.
E vai ver as cidades do Egipto,
para aprenderes com os que sabem muito.

Terás sempre Ítaca no teu espírito,
que lá chegar é o teu destino último.
Mas não te apresses nunca na viagem.
É melhor que ela dure muitos anos,
que sejas velho já ao ancorar na ilha,
rico do que foi teu pelo caminho,
e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.

Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.
Sem Ítaca, não terias partido.
Mas Ítaca não tem mais para dar-te.

Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.
Sábio como és agora, senhor de tanta experiência,
terás compreendido o sentido de Ítaca.

Cavafy [Alexandria, 1863-1933]
1911