"Não defendo nenhum dos meus indícios terrestres separadamente, como também não defendo nenhum dos meus versos nem das minhas horas isoladas: o importante é o conjunto. Não defendo sequer o conjunto dos meus indícios terrestres, defendo apenas o seu direito à existência, e à verdade - a minha." Marina Tsvietaieva
domingo, 31 de janeiro de 2010
grito
E existem gritos que são tudo isso a um tempo.
A sua base é sempre a mesma – o excesso. O limiar do suportável. O que grita em nós? A alma ou o corpo? Ambos. Não há alma sem corpo nem corpo sem alma, embora haja por vezes uma relação de tirania.
Quando audível, o grito faz-se no corpo por ordem da alma. Como se o corpo tivesse que ser maior para poder acompanhá-la. E o grito audível liberta. Alivia momentaneamente a Alma que encontra nele um órgão a mais. O grito faz-se órgão. Faz-se ser. Autonomiza-se e tem uma acção. Ele entra no Mundo e perturba-o. Perturba a ordem quotidiana. É o incompreensível. A expressão de um desconhecido que ressoa em todos os corpos que, de algum modo, o reconhecem. O grito não deixa o mundo indiferente. Há pessoas fechadas em manicómios simplesmente porque na rua, gritaram. Gritaram com quanta força tinham e sem “saberem” porquê.
Quando silencioso, o grito sufoca. Tem que procurar outras expressões. O mal-estar é o mesmo. O mal-estar é o excesso.
Tudo em mim é grito silencioso que precisa disciplinar-se.
Passeava com dois amigos ao pôr-do-sol – o céu ficou de súbito vermelho-sangue – eu parei, exausto, e inclinei-me sobre a mureta– havia sangue e línguas de fogo sobre o azul escuro do fjord e sobre a cidade – os meus amigos continuaram, mas eu fiquei ali a tremer de ansiedade – e senti o grito infinito da Natureza. (Munch)
quarta-feira, 27 de janeiro de 2010
Specchio - a essência profunda do Mundo que se oculta nos Mistérios do Tempo
Quem somos? De que somos feitos? Existirá mesmo uma fronteira, uma linha delimitada que separe cada um de nós daquilo e daquele que é Outro? Construir-se-á a nossa individualidade nesta delimitação? Creio que não.
Onde termino eu e começa a a “individualidade” de todos aqueles com quem me cruzei, cruzo e cruzarei? Onde começo eu?
Sustentar-me-ei sozinha? Saberei o que sou para mim sem que os outros que amo me devolvam uma imagem de mim própria?
Não seremos todos fruto dos jogos de espelhos em que entramos mesmo antes de entrarmos no Mundo?
Hoje senti a necessidade de celebrar o dia de aniversário de alguém que já partiu. Alguém que nunca conheci mas que, de certa forma, entrou com uma estranha intensidade naquilo que entendo como “eu”.
Pela simples razão de que, para o seu irmão, eu sou de algum modo – estranhamente intenso também – um reflexo seu. Por essa razão pedi autorização para“publicar” aqui alguns textos que não foram publicados. É uma singela homenagem à existência de alguém que, não tendo conhecido, sinto conhecer, e que ajudou na construção de uma das mais bonitas amizades da minha vida.
À Vida da Ana, onde quer que ela esteja agora.
Excursos sobre o medo
Ana Maria Ferreira
Cascais, Dezembro 1995
I (Heróis)
O medo faz, às vezes, o pacto com a nostalgia
e o perfil da coisa tem olhos de gente, pode estar
num casamento, ser. É um modo, uma fórmula,
ninguém sabe bem onde bolsa a virtude e onde está
o segmento do corpo ou da alma. Ele está silencioso:
o sorriso, a mão que se estende solidária e aérea, o esgar do amor.
Terríveis as composições, essas fórmulas matrizes,
essa podagem de folhas feitas mármore.
Porém, é com esses segmentos de imagem
tosca que se fazem os heróis. O medo cria, às vezes,
com a nostalgia, pérfidas imagens.
III (Os Ácaros)
Curioso pensar que a virose é o medo
enlatado num ácaro em que o médico é a fada
fugaz do seu saber. Morrer,
é assim como ter muitos ácaros na carpete,
e todos, por fim, dizerem que na mente,
a constipação tem o mesmo enigma do acaso.
IV (A Varanda)
Tenho um medo de morte, minha amiga, de não saber
o que te gerou, qual o plasma, a semente, a virilha
que assim te quis única e a mim me amordaçou.
Não relato de ti porque não sei dizer o que não sei, tu és a amiba,
a biopsia do intestino delgado da minha raiva
e saber-te, era mais complicado do que saber de mim
e eu destituí-me de morgado. No pouco que desperta,
nessa flor de Lys que teima em crescer sem água
numa varanda sem história nem paisagem, talvez aí?
V (O Cais)
Uma milha marítima sobrou nos meus pés
e o Oceano já não é o Oceano. Limito o medo
ao cais, faço aí o entreposto dos aromas, paga-me
quem pode e os outros passam livres
por não saberem que um pouco de mar a menos,
basta para perder o cais e o destino.
VI (O Berço)
Em uma singela praça de coreto onde nem a música,
sequer, se adivinha, faço diariamente o berço
enquanto o medo me coroa de rainha. Aí eu sei
que cada passo não deslustra, aí a morte tem uma taberna,
aí, ainda, desconheço qual a bala que pode furar
quem sempre a espera. Enfim, praças e coretos
são apenas esquadrias da vida, sequer memórias,
porque lembrar é como perder no casino
o plasma do começo, a história.
VII (O Nome)
O medo é a metáfora que não come o corpo
mas o rosto que diz de si a sua alma.
Nele, no olhar, na boca, no nariz que é o pior
bocado, porque secundário como é, desiste,
nada se esconde. O medo constrói o nome.
VIII (Outubro)
Há certas noites em Outubro em que a chuva
rebenta, vertical, molha o nosso espanto e faz
dos dedos que seguram o cigarro uma imensa solidão.
Como voltar atrás, como saber o que está perdido?
O cigarro, a chuva, e esse Outubro que inicia,
a monção do medo estão, obviamente, a chegar
à outra ponta do segredo e quando aí se chega
não se pode escrever mais. Relembro.
IX (O Bar)
Não fazes a mínima ideia do que é o medo
quando o sol se vai. O vidro reflecte a nossa imagem
e não existe nem diálogo, ou prazer, ninguém.
Bebe-se o que existe e quem morreu primeiro
vence. E como é tudo mais complexo, os vivos sofrem
e nada lhes dói a não ser o modo de ficar.
X (O Baile)
Não sei como se encontraram os vestidos, nesse tempo
parado, como hoje em que a memória trouxe os meninos
de uma praia distante, vergastados pelo vento, pela areia
e pelas histórias que alguém lhes contou. Não eu que nos vestidos
vejo o bibe, o alpendre, o olhar cruzado
entre quem amava e não chegou. Nada, como estar
quieta, em minha casa, que pode ser areia, deserto,
e talvez, a alma desses vestidos, e dos meninos que matou.
XI
O medo é a forma letal de estar vivo
como os animais que sem malícia nos alimentam.
O medo faz-nos felizes e ímpios.
XI (Breve espaço de lazer)
O medo é o instinto da alma quando o Destino
abre brechas no pano e salta dele
o odor da morte, a quebra, o corpo, o risco
no papel que pode ser ainda, a caligrafia
do primeiro escriba, o que nos deu o nome.
O medo, agora que lhe escrevo a forma, é assim
como a pele que sempre esteve nos braços:
nós olhamos, vemos o filamento das veias, o sulco
de um músculo e a solidão descai nos dedos
feitos, eles próprios, silêncios, quantas vezes, aço.
O aço, é, enfim, a caixa onde o medo fica.
Não é por acaso que a bala, o punhal, a sina,
tem no metal a metáfora, o modo, o fim.
E nele, nesse suor que nem sempre rima,
nesse estar vigilante – o medo motiva – reparte-se
a tristeza, o sonho, o amor. O medo é a vida.
O Natal
Quando o grande amor acaba, fica,
quase sempre, um ódio inútil, destituído
de razão, assim como o inferno que os humanos
sabem fazer porque ainda lhes falta o verdadeiro.
E, no entanto, atrás da sombra desse amor
está o aconchego. Mesmo se não é visível,
ficam lâminas de felicidade, gestos, lapsos
e êxtases tanto mais preciosos porque alastram
enquanto – quem goste – fuma um cigarro.
E na tabuada do medo, às vezes, peste,
quando se medita, uma amizade que tem outro gosto:
única na cumplicidade, traz recado e eles
transformam o corpo numa solidão compartilhada
e sem corpo. É como um pêndulo fiel
e límpido. É, talvez, a bem-aventurança.
Mas nem todos sabem que é isto o Natal.
23/12/97
terça-feira, 26 de janeiro de 2010
Specchio
Foi uma pequena brincadeira, uma primeira experiência com o windows live movie maker.
As imagens do Céu, reportam-se à noite de passagem de ano e foram avidamente "capturadas" por mim que queria guardar a Lua Cheia.
A sequência de Litografias, ilustram a maravilhosa história de Daphnis e Chloe como só Chagall saberia fazer. E para terminar a ficha técnica atribuindo a César o que é de César, as músicas utilizadas são o Adagio para Cordas de Samuel Barber e o Adagio do Concerto para piano em Lá maior, K488 de Mozart. Salto as interpretações.
luz silenciosa
A rua está vazia. As poucas pessoas que aqui passam, passam em silêncio, apressadas, como se o lugar onde estou fosse neste momento um vazio que é urgente atravessar. Deitam-me um olhar de onde salta um misto de interrogação e reprovação – como pode ela estar ali?, e um abanar de cabeça que não chega a ser.
Há um silêncio que invoca a Noite e que se sobrepõe ao ladrar furioso do cão da esquina e a todos os restantes sons inúteis. O único som em harmonia com o silêncio deste instante, - que com ele compõe a banda sonora - , provém da dança dos pedaços de papel que giram em torno da mesa onde estou, cumprindo a coreografia e a vontade do vento.
O frio intenso condenou este lugar. E quem permanece em lugares condenados, condenado estará, penso eu, com a minha costela hebraica, com a ressonância do meu nome. Neste momento, o postal que me serve de marcador à “Morte de Virgílio” - Luz Silenciosa - voa também. Sinto um misto de estremecimento e fascínio ao vê-lo entrar no bailado juntamente com os pedaços de papel. Pousou. E no fim deste andamento levanto-me para apanhá-lo como se do acto de o recuperar dependesse a minha salvação.
O casal de irmãos que diariamente aqui vem almoçar dobra a esquina. Olha a montra, como sempre, e entra. O sino da Igreja confirma o cumprimento deste ritual diário – é meio-dia.
Chega outro “condenado”. Entra para ir buscar o café mas virá sentar-se na mesa ao lado e permanecer. Arrumo as minhas coisas coisas com uma estranha urgência e parto. Preciso voltar para casa com a imagem intacta do vazio que encontrei.
domingo, 24 de janeiro de 2010
...mais uma vez, as mãos, "a catedral" da Vontade
Vem-me à memória um acontecimento que talvez possa explicá-lo, que talvez possa ser uma causa parcial. Nasci sozinha. Comecei a forçar a entrada neste mundo quase sem que a minha mãe desse por isso. Foi um alvoroço. A minha Avó saiu desesperada em busca da parteira que tinha posto alguns dos membros da família neste mundo. Quando a velhinha chegou, eu estava praticamente pronta a entrar em cena. Foi preciso apenas um pequeno gesto das mãos enrugadas da velha senhora, que só consigo imaginar vestida de preto, para que me expusesse totalmente, fazendo ouvir o meu primeiro choro - não sei se por medo do mundo, se por medo daquela figura que com as suas mãos fez o último gesto. A senhora, que vinha de um parto difícil, não queria aceitar o dinheiro pois, segundo ela, não tinha feito nada. Mas fez.
Talvez esta experiência tenha ficado inscrita algures. Esta espécie de voluntarismo feroz, no sentido de inesperado, que tanta agitação provocou e que, apesar de tudo, só se pode consumar com uma pequena intervenção de uma figura algo sinistra, algo mitológica, com qualquer coisa de parca. Talvez tivesse ficado inscrito em mim, como lição vivida e incontornável, que todo o acto de vontade (em mim) depende em última instância da aparição daquela que com as suas mãos tece o destino. Foi esse gesto que me proporcionou a primeira respiração autónoma sob o meio-dia.
E como num corpo lacerado as células procuram novas conexões, alternativas, esse Marte, tímido em mim, procurou aliados – Vénus. Dessa aliança nasceu uma exaltada Atenção, essa “oração da alma”, nas palavras de Goethe. Essa bússola, estrela polar que dispensa itinerários para onde quer que seja, mapas ou esquemas, mas que, num simples sinal ou brilho, indica.
Por isso as mãos importam tanto. É Vénus quem as identifica. As mãos que fazem o último gesto; que sendo destino, não se vistam de negro mas de Luz; que resgatem; que mostrem a cada instante como vale a pena a Vontade.
quinta-feira, 21 de janeiro de 2010
da brecha, da falha, do Tempo
Existem fases da vida, cíclicas, em que o tempo parece afrouxar as suas garras. Deixamos sentir a divisão dos tempos – trabalho e lazer, mundo e alma. Como se o compositor do Universo nos tivesse deixado, na sua partitura imensa, uma secção por definir, por (re)criar.
É uma brecha no tecido do nosso estar. Uma espécie de antecipação da velhice, (ou) uma proximidade da morte. Um esvaziamento de todos os significados, de todos os sentidos, uma subversão na hierarquia das coisas. Um canal aberto para esse Tempo maior que é, talvez, o grande Mistério da Vida.
Nesta espécie de limbo, a consciência vagueia sem rede nem direcção – a direcção da marcha linear, bem marcada, que, impulsionando-nos para a frente (que frente?), salva condenando. “Não tenho tempo para essas coisas” e o esboço de um sorriso – eis a sua máxima.
A rede – aquilo que não nos permite ir ao fundo. Que torna impossível a alquímica transmutação que é movimento – a queda no baixo, no fundo vazio que possibilita a ascensão maior. O círculo de giz; as balizas que não permitem transcender as margens; a ditadura do metrónomo que não permite a falha.
E esse canal aberto para o Tempo maior é o canal aberto para a Memória.
A consciência expande-se. Vai mais mais além. Sobe. Desce. É simultaneamente a possibilidade da verdadeira vida, do verdadeiro acesso a nós próprios e ao mundo e, também, da loucura.
quinta-feira, 14 de janeiro de 2010
Marguerite Yourcenar: Le paradoxe de l'écrivain
É natural então que, por mais diversa que seja a nossa actividade, por mais dimensões horizontais que experienciemos, o mesmo cunho se revele – a nossa dimensão vertical que imprimimos nas coisas. Será isso o “estilo” – a linguagem própria que cada um conseguiu alcançar num trabalho consigo mesmo e com o mundo, com o interior e o exterior. Creio que este “estilo”, no sentido mais nobre da palavra, aquilo que nos faz perceber imediatamente num quadro que se trata de um Chagall e não de um Magritte, numa sonata que é um Beethoven e não um Mozart, num Mozart de Maria João Pires que é ela e não um Mozart/Richter, a conquista dessa linguagem própria que tem por vezes muito de indefinível – um inefável não sei o quê – que estabelece a nobreza da arte. A arte como contributo pessoal, único, na visão do universal. E esse “estado”, Yourcenar diz-nos, a propósito do escritor, como de todo o artista, funda-se num paradoxo – o artista tem que ser profundamente ele próprio, dar o contributo que só ele pode dar e, ao mesmo tempo, afastar-se de si, fazer tábua rasa de si mesmo. Isto que parece uma contradição, só o é se tivermos uma noção restrita deste “si próprio”. O si próprio aqui em questão não é a “personalidade” definida pelos burocratas do psiquismo. É um si mesmo cósmico. As noções que julgo melhor exprimirem esta visão são efectivamente as de frequência e sintonia. Alguém que procura a sintonia com a sua frequência procura necessariamente a sintonia com o Mundo. E estar neste caminho, onde tudo contém o seu reverso, onde a realidade é necessariamente fluída e transitória, é de algum modo - e paradoxalmente também - já se ter encontrado.
Esta "comunicação" da Yourcenar é, como ela própria, uma pérola.
O que me impressiona, para além do seu conteúdo mais imediato - é inevitável que ao vermos um vídeo de alguém a falar sobre um assunto nos centremos nas palavras, na mensagem por elas veiculada - é o seu corpo, a sua voz - toda a sua fisionomia que nos expõe, numa outra linguagem, as suas ideias e, uma outra dimensão das mesmas - o corpo do pensamento, a sua verdade.
Yourcenar suscita em mim o mesmo tipo de impressão que me suscitaram alguns dos grandes Mestres Budistas - a sensação da verdadeira Presença (a si e consequentemente aos outros), de um Presente, de alguém que não pertence a nenhum tempo, a nenhum género, a nenhuma categoria. Não porque está alienada dessa condição, não porque a repele ou nega, mas porque as viveu ao ponto de as ultrapassar. De lhes conferir o estatuto de dispensáveis.
Le paradoxe de l'écrivain (1:3) http://www.youtube.com/watch?v=ovp90NAgkTs
Le paradoxe de l'écrivain (2:3) http://www.youtube.com/watch?v=HxL3unhjbcA
Le paradoxe de l'écrivain (3:3) http://www.youtube.com/watch?v=n0hGqdoZXQE
segunda-feira, 11 de janeiro de 2010
saudades de casa
Enquanto lia, senti alguém aproximar-se. Por entre as linhas do livro que lia, percebi quem era. Fechei o livro e ela estava sentada à minha frente, pedindo-me um cigarro. Quando Lilith chega reclama atenção. Não é alguém com quem se possa estar lado a lado, numa solidão partilhada. Quis saber como estava, apesar de já ter pressentido o frémito da sua presença. Lilith não quer saber como estou. Não lhe interessam os pormenores do meu quotidiano. E na realidade, pouco importa, pois na sua presença tudo isso se apaga. O mundo fica sob outra tonalidade e outro Tempo. Por vezes caímos em abismos. Outras vezes não. Mas há sempre uma tensão.
Estou com saudades de casa, disse-me enquanto acendíamos o cigarro. Olhei-a por longo tempo enquanto aquela “ideia” ressoava em mim procurando a frequência correcta. Lilith levou a mão à mala e tirou um saco de plástico que colocou em cima da mesa. Como eu, ela ama aquela rua onde não moro. Onde toda a gente me reconhece e me vê aparecer e desaparecer sem saber de que portas entro e saio. É uma micro aldeia dentro da aldeia que é o bairro. A grande maioria dos seus habitantes são pessoas que não “funcionam”. Reformados ou desempregados que vivem não se sabe bem de quê, o que lhe confere uma dimensão de tempo peculiar.
De dentro do saco de plástico Lilith tirou um Buda. Uma figura que nos apaixona a ambas. Apesar de parecer um contra-senso dizer-se que Buda nos apaixona, não o é. Pensarei mais tarde porque não o é. Olhei-o demoradamente enquanto a frase de Lilith procurava um local onde pousar em mim.
Era um Buda peculiar. Um ser desperto. Porém, toda a sua postura era demasiado humana. Não reflectia cansaço, desespero, nem outra qualquer emoção que possamos reconhecer. As mãos pousadas sobre o joelho da perna direita, em pé, a cabeça deitada sobre as mãos, transmitiam a serenidade de um Buda que se concedeu um instante de humanidade. Que se permitiu deixar, por um instante, a verticalidade que o caracteriza e que, com certeza, contemplava os seus pensamentos e emoções humanos deixando-os partir.
Apaixonei-me por esse instante da vida de um Buda, cristalizado naquela imagem que Lilith me ofereceu e fiquei feliz por poder trazê-lo comigo. Percebi, com razão ou sem ela, que naquele instante nos fundíamos os três numa nostalgia que só podia ser a saudade de um regresso a casa.
da identidade
Não te sentes entre mim e a porta, Lilith. Não mantenhas essa altiva e provocadora semi-presença. E sobretudo não te ausentes deixando a mesa cheia de fragmentos por arrumar.
da verdade da Árvore
Desconfiemos de tudo o que parece viver lá em cima. Daquilo que tem cima sem baixo. Dos novos falsos deuses que povoam o espaço virtual. Desconfiemos de todas as máximas ocas que nos chegam a todo o instante. Olhemos a boca que as diz. Tem vida, cor? Olhemos o rosto que as veste. Tem nele marcado os sulcos do que é humano? Ouçamos a voz que as proclama. Tem a perturbação serena do conhecimento das “dores do mundo”?
Como a árvore, cumpramos a nossa natureza. Não recusemos nada do que de humano a Vida nos pede. Não recusemos a matéria “menos nobre” que vive em nós. Só a partir da sua transmutação alquímica atingiremos (eventualmente) a leveza, serenidade e beleza. A verdade não circula em bolhas de sabão.
terça-feira, 5 de janeiro de 2010
o som da Voz de Virginia Woolf
e hoje, cheia e incapaz de dar forma ao que quer que seja, esta foi uma dádiva imensa.