“O Sem Forma habita todas as Formas.
Eu canto a Glória das Formas”
Eu canto a Glória das Formas”
Kabir (Poeta persa do século VI a.C.)
“As pessoas que perguntam constantemente “porquê?” são como os turistas que estão diante de um edifício a ler um guia e estão tão ocupados com a leitura histórica da sua construção, etc., que isso os impede de ver o edifício.” (Wittgenstein, Cultura e Valor, 65)
O turista é o contrário do flâneur. A sua luta primeira é contra o tempo, o santuário da atenção. Na ânsia de tudo conhecer sobre “um espaço que não é o seu”, sobre o que está aí, fora de si, estrangeiro, distinto, irredutível a / não co-essencial com a sua identidade que é um particular de coordenadas distintas, ele mediatiza a sua relação com o que está perante si. Recorre ao guia, ao método estabelecido que é feito da história da coisa e das suas histórias. Recorre também a um circuito de pontos relevantes.
O turista não se perde. Ele anda em grupos que, movidos pelos mesmos interesses de acumulação de factos e explicações estabelecem a cada momento a sua diferença face aos locais, aos monumentos, aos transeuntes. Espelham a sua identidade. E a visita tem um prazo, é delimitada no tempo (e no espaço), tem um final seguro, previsto. Ele não fica, não se detém. Volta intacto ao seu espaço. Traz, juntamente com a bagagem e os souvenirs, conhecimentos partilháveis com aqueles que lhe são “idênticos”. Volta com a ânsia de comunicá-los “aos seus”. E permanece idêntico a si próprio pois a demarcação é o seu limite. E, paradoxalmente, sempre com sede de novas viagens.
O porquê é assim a atitude do conhecimento (ou dos conhecimentos), da instrução. A distância que se coloca como princípio. A “objectividade científica”, em que eu permaneço – enquanto um dos termos da relação – definido, com limites que não estão nunca em causa, que nunca se jogam. A minha individualidade, a minha identidade, definem-se por esta imutabilidade do essencial.
O turista não se perde. Ele anda em grupos que, movidos pelos mesmos interesses de acumulação de factos e explicações estabelecem a cada momento a sua diferença face aos locais, aos monumentos, aos transeuntes. Espelham a sua identidade. E a visita tem um prazo, é delimitada no tempo (e no espaço), tem um final seguro, previsto. Ele não fica, não se detém. Volta intacto ao seu espaço. Traz, juntamente com a bagagem e os souvenirs, conhecimentos partilháveis com aqueles que lhe são “idênticos”. Volta com a ânsia de comunicá-los “aos seus”. E permanece idêntico a si próprio pois a demarcação é o seu limite. E, paradoxalmente, sempre com sede de novas viagens.
O porquê é assim a atitude do conhecimento (ou dos conhecimentos), da instrução. A distância que se coloca como princípio. A “objectividade científica”, em que eu permaneço – enquanto um dos termos da relação – definido, com limites que não estão nunca em causa, que nunca se jogam. A minha individualidade, a minha identidade, definem-se por esta imutabilidade do essencial.
Ater-se ao como, pelo contrário, implica simultaneamente coragem e confiança (se quisermos, confiança epistemológica). Implica uma abertura – a omnipresença da atenção, a contemplação. Implica a transformação do próprio espírito, dos seus movimentos que inscrevem novos desenhos, novas relações. E aí reside simultaneamente o risco e o essencial.
“Aquele que contempla segue vestígios, por isso aquele não é só obrigado a prestar atenção, é sobretudo obrigado a ter prestado já atenção: prática venatória que representa para Benjamin o grande arquétipo do estudo ocioso. Como os nove belos rapazes que caçavam por montes e vales, aquele que contempla, que se entrega à perseguição de vestígios, arrisca-se a sucumbir à sua aura.” (Molder, Semear na Neve, 59)
A imagem do caçador, enquanto aquele que segue vestígios, é assim um outro contraponto rico em relação à imagem do turista.
“Aquele que segue vestígios, aquele que persegue a caça, arrisca-se a transformar-se nela, arrisca-se a esquecer os enleios do sangue e do contrato, os cuidados maternos, descobre que já não pode submeter-se a nenhum desses doces constrangimentos.” (Molder, op. cit., 59)
Assim, o centrar-se no como, enquanto atitude verdadeiramente científica (Goethe), a perseguição de vestígios, exige a ruptura com “o velho estilo de pensamento”, na expressão de Wittgenstein, e que tem como principal referência o princípio da causalidade. Toda a noção de proximidade, tão operante na definição de uma identidade em termos históricos, fica subvertida quando nos envolvemos neste “novo estilo” de pensamento. A atenção ao facto, a perseguição de vestígios, exige viagens sem a causalidade como guia, como método. A proximidade não é um dado é uma descoberta que se revela num comprometimento com essa busca. Num comprometimento semelhante ao daquele que ama, como refere Benjamin no Prólogo à Origem do Drama Barroco Alemão: “E só este [o amante] pode testemunhar que a verdade não é desvelamento que destrói o mistério, mas antes uma revelação que lhe faz justiça.” (17)
“Aquele que contempla segue vestígios, por isso aquele não é só obrigado a prestar atenção, é sobretudo obrigado a ter prestado já atenção: prática venatória que representa para Benjamin o grande arquétipo do estudo ocioso. Como os nove belos rapazes que caçavam por montes e vales, aquele que contempla, que se entrega à perseguição de vestígios, arrisca-se a sucumbir à sua aura.” (Molder, Semear na Neve, 59)
A imagem do caçador, enquanto aquele que segue vestígios, é assim um outro contraponto rico em relação à imagem do turista.
“Aquele que segue vestígios, aquele que persegue a caça, arrisca-se a transformar-se nela, arrisca-se a esquecer os enleios do sangue e do contrato, os cuidados maternos, descobre que já não pode submeter-se a nenhum desses doces constrangimentos.” (Molder, op. cit., 59)
Assim, o centrar-se no como, enquanto atitude verdadeiramente científica (Goethe), a perseguição de vestígios, exige a ruptura com “o velho estilo de pensamento”, na expressão de Wittgenstein, e que tem como principal referência o princípio da causalidade. Toda a noção de proximidade, tão operante na definição de uma identidade em termos históricos, fica subvertida quando nos envolvemos neste “novo estilo” de pensamento. A atenção ao facto, a perseguição de vestígios, exige viagens sem a causalidade como guia, como método. A proximidade não é um dado é uma descoberta que se revela num comprometimento com essa busca. Num comprometimento semelhante ao daquele que ama, como refere Benjamin no Prólogo à Origem do Drama Barroco Alemão: “E só este [o amante] pode testemunhar que a verdade não é desvelamento que destrói o mistério, mas antes uma revelação que lhe faz justiça.” (17)
Esta distinção goethiana entre o como e o porquê é, como temos vindo a ver, fundamental e as suas implicações são infindáveis, ecoando nas mais diversas dimensões da vida. O combate ao princípio da causalidade, como prática de exterioridade instaurada, que de certa forma lhe subjaz, pode ser lido na Máxima de Goethe:
“Le plus élevé serait: comprendre que les faits sont déjà théorie. […]“ (Máxima 575, in Écrits sur l’art, 14)
Mergulhar assim na obra (da arte como da natureza), atender à sua fisionomia, à sua organicidade, recusar a mediação feita através de toda a teoria – é nisto que consiste a exortação de Goethe, retomada por Wittgenstein, por Benjamin e expressa igualmente nas concepções de Gould.
“Le plus élevé serait: comprendre que les faits sont déjà théorie. […]“ (Máxima 575, in Écrits sur l’art, 14)
Mergulhar assim na obra (da arte como da natureza), atender à sua fisionomia, à sua organicidade, recusar a mediação feita através de toda a teoria – é nisto que consiste a exortação de Goethe, retomada por Wittgenstein, por Benjamin e expressa igualmente nas concepções de Gould.
“Cessez de vous écouter les uns les autres. Essayez tout au moins de vous faire une idée à vous de chaque partition. Et n’hésitez pas à vous y conformer. Ce n’est qu’après avoir formulé clairement cette idée, sans vous référer à quelque prétendue tradition d’interprétation qu’on essaie de vous imposer, que vous pouvez vous mettre à écouter les autres, collègues et maîtres.” (Gould, Écrits I, 110)
Este constante apelo a um comprometimento total, que deve ser lido no cruzamento com uma exigência profunda, também ela comum aos universos em questão, de autodesenvolvimento (indissociável de uma concepção de conhecimento como autoconhecimento), remetem-nos para uma dimensão simbólica.
Este constante apelo a um comprometimento total, que deve ser lido no cruzamento com uma exigência profunda, também ela comum aos universos em questão, de autodesenvolvimento (indissociável de uma concepção de conhecimento como autoconhecimento), remetem-nos para uma dimensão simbólica.
O símbolo tem esse carácter desconcertante para o pensamento analítico, na sua acepção mais fundamentalista, de pertencer a dois mundos. De se afirmar na sua particularidade e, ao mesmo tempo, conter em si o universal. Ele convoca-nos para uma outra noção de proximidade, que não a proximidade da vizinhança do pensamento causal.
O símbolo exige, deste modo, a participação e a recriação por parte daquele que o acolhe. É nesta medida, que é uma nova perspectivação da dualidade sujeito/objecto e consequentemente da objectividade, que se coloca como exigência o autodesenvolvimento.
O símbolo exige, deste modo, a participação e a recriação por parte daquele que o acolhe. É nesta medida, que é uma nova perspectivação da dualidade sujeito/objecto e consequentemente da objectividade, que se coloca como exigência o autodesenvolvimento.
Em última análise, a personalidade, como a obra, na encruzilhada entre duas dimensões, está ela própria sujeita a esse movimento interno de definição, de equilíbrio, de novos equilíbrios.
O pensamento, centrando-se na própria coisa, deixa-se, de certa forma, condicionar pela sua forma própria, pelo seu ritmo. Há um movimento interno de vai-e-vém na própria coisa, decorrente dos seus vários níveis de sentido, que impede a sua apreensão num só fôlego. O movimento de respiração, intermitente, descontínuo, é o movimento de abertura, de descida e subida, que permite que a obra inscreva o seu movimento no espírito. O vai-e-vém é não só um vai-e-vém entre os vários níveis de sentido da obra, mas um vai-e-vem entre os movimentos do nosso espírito e os movimentos da própria obra. (Vemos também aqui como se joga a relação objectividade/subjectividade). É ainda este movimento que permite destruir a primeira imagem que fazemos da obra, a primeira impressão da relação empática. Para isso, diz-nos Benjamin, devemos renunciar num primeiro momento à totalidade, devemos descer aos pormenores, fragmentar a obra, mortificá-la.
Esta descida ao nível dos pormenores, mortificadora, fragmentadora, analítica, permite arrancar o objecto à sua cristalização numa configuração familiar – a sua falsa unidade. Esta é a função da análise conceptual, que não deve ser entendida como um fim em si. Ela tem como função última “salvar os fenómenos nas ideias”. E a ideia não é algo abstracto, não é o universal a que se chega como resultado de uma média estatística.
O pensamento, centrando-se na própria coisa, deixa-se, de certa forma, condicionar pela sua forma própria, pelo seu ritmo. Há um movimento interno de vai-e-vém na própria coisa, decorrente dos seus vários níveis de sentido, que impede a sua apreensão num só fôlego. O movimento de respiração, intermitente, descontínuo, é o movimento de abertura, de descida e subida, que permite que a obra inscreva o seu movimento no espírito. O vai-e-vém é não só um vai-e-vém entre os vários níveis de sentido da obra, mas um vai-e-vem entre os movimentos do nosso espírito e os movimentos da própria obra. (Vemos também aqui como se joga a relação objectividade/subjectividade). É ainda este movimento que permite destruir a primeira imagem que fazemos da obra, a primeira impressão da relação empática. Para isso, diz-nos Benjamin, devemos renunciar num primeiro momento à totalidade, devemos descer aos pormenores, fragmentar a obra, mortificá-la.
Esta descida ao nível dos pormenores, mortificadora, fragmentadora, analítica, permite arrancar o objecto à sua cristalização numa configuração familiar – a sua falsa unidade. Esta é a função da análise conceptual, que não deve ser entendida como um fim em si. Ela tem como função última “salvar os fenómenos nas ideias”. E a ideia não é algo abstracto, não é o universal a que se chega como resultado de uma média estatística.
No entanto, negar a causalidade como princípio de pensamento não significa negar que cada acto, cada pensamento, cada atitude ou decisão tenham consequências, e que essas consequências sejam determinadas pela energia daqueles. Não significa negar que existe uma lei complexa de causa e efeito que rege o macro e o microcosmo. Neste sentido, e aceitando que existe, poderíamos mesmo dizer que há uma intuição correcta subjacente à explicação causal do mundo e das manifestações que o constituem – a intuição de que tudo está interligado, que não há acções (em sentido lato) neutras, e isso pode ser compreendido através de uma análise atenta do mundo e de nós próprios.
O pecado que enforma a materialização dessa intuição, a razão que a faz falhar completamente o alvo, é a pretensão de que tudo isto é claro, linear, de que tudo isto opera visível, descortinável num plano positivo, “objectivo”. E é esta assumpção que funda na sua essência as “disciplinas”, os métodos, e que constitui o critério de cientificidade dos mesmos.
(excerto de um trabalho sobre Benjamin, Goethe e Glenn Gould onde, a pressentida sintonia entre os universos destes três autores resultou num feliz e profícuo encontro)