terça-feira, 30 de março de 2010

domingo, 28 de março de 2010

Mar Morto ou a Montagem

Há um fundo loiro, claro, de olhos azuis. Um fundo bonito, pelo ar tranquilo que confere ao plano, mas que não chega a ser serenidade. Ele é dotado de uma vontade – quer ser fundo. E, sem que perca esse ar de paisagem tranquila, mantém uma luta constante pelo domínio do espaço; atento às mais pequenas movimentações internas, ao formato, estende-se e contrai-se de modo a não deixar lugar a qualquer interferência, a qualquer elemento que perturbe aquilo que julga ser a plenitude do espaço. Este fundo busca a moldura - procura capturar o Tempo; anseia pelos limites definitivos que o possam eternizar.

E sobre esse fundo, tu. Num inquieto repouso que salta à vista no teu olhar e no teu sorriso petrificados. Na rigidez de toda a tua postura. A tua luta é com o espaço interno. Constróis e reconstróis o dique. Retocas a cada instante esses contornos que permitem o teu enquadramento nesse fundo. Precisas dessa imagem, desse formato.
Também tu estás disposta à moldura. Não a constróis pois esgotas-te em outra tarefa. Deixas que a construam. Olhas em tua volta e ele, o fundo, tranquiliza-te. Vês que cabes nele, tu, esse teu tu contornado. Ele dá-te a tua medida num espelho agradável onde vês reflectidos esses limites que talvez te salvem, que te vão salvando, pensarás tu.

É uma má composição, penso eu ao confrontar-me com a imagem. Uma montagem que não convence.

Entrevi-te em outro plano, em outras coordenadas – um Mar imenso no centro de uma clareira criada por um relâmpago que nos apanhou sem protecção numa Noite qualquer.

Será impossível morrer afogado nas águas do Mar Morto. Mas nele, tudo o que é Vida não cabe. É essa a sua forma de Salvação.

sábado, 20 de março de 2010

Annemarie Schwarzenbach, O Vale Feliz


"Mas eu não sou arqueóloga. Não tenho profissão. Poderia exercer qualquer uma. Viver em todas as cidades. Sentir-me em casa em todos os países. Mas não transijo comigo própria: o preço a pagar pela “boa vida” era demasiado elevado.

Recordo-me de todos os avisos que me foram dirigidos, de todos os conselhos. Mas vocês utilizaram uma língua que eu não entendia. Lamentaram-se da minha deserção, da minha sede de viagens, das minhas errâncias. Mas esqueceram-se de me dizer quem seria o juiz.

Reprovaram-me por me expor voluntariamente ao perigo, por considerar a aventura como um pretexto desperdiçar as minhas forças e desdenhar dos deveres que me teriam sido impostos por uma “vida normal”.

Como representam vocês a aventura? Essa palavra nada significa para mim. - A pista das caravanas por detrás do muro do jardim? Quererão transformar a Terra numa plantação de couves? E em seguida escoá-las a preço baixo? Cada um com a sua sorte, dizem vocês? - Eu não tenho sorte ao jogo.

Eu não poderia desperdiçar as minhas forças: pois o esforço está interrompido.

Pedem-me que me esforce, sim, mas com que objectivo?

Respondo: Não há qualquer objectivo que desejasse alcançar utilizando falcões amestrados e matilhas de cães.

E termino: só me meti a caminho para aprender o terror."

segunda-feira, 15 de março de 2010

sem Nome

Invoco o teu rosto, ó ilusão
afasto os mil e um véus que te ocultam o olhar.
Entrevejo a tua boca, ao fundo
ainda ornamentada por um quase-arco-íris e
faço a Pergunta.

(introduzo o Fogo naquilo que é Água)

E na Resposta sem timbre,
na Voz do Silêncio,
a palavra de Morte devolve-me ao quotidiano.

É tudo.

terça-feira, 2 de março de 2010

a ilha do meu fado

esta mão que me escreve


A imagem paira - a imagem incandescente que se sobrepõe a outra imagem, em movimento – um sonho. O filme desenrola-se sob a forma de um continuum sonoro. Um baixo que me percorre o corpo, entra na minha circulação sanguínea, condiciona os movimentos dos músculos. E na cabeça, essa imagem que dirige o silencioso caule, como um maestro apanhado num gesto invulgar. Como um fractal, contém em si todo o caos maior do sonho. Toda a sua ordem (ainda) imperceptível.
É a minha mão - a minha mão direita. Uma mão que eu poupo e protejo subtraindo-a tanto quanto possível aos percursos necessários, aos caminhos sinuosos, o que os torna ainda mais sinuosos, porque sujeitos a gestos sem charme, sem carisma; movimentos do medo e, simultaneamente, da sua recusa.
Por um acidente quotidiano ela, a mão, sofreu uma mutilação. Entre o indicador e o médio abriu-se uma brecha – uma incisão perfeita na membrana que separa agora a parte inferior da superior. Eu não quero olhar. Tento escondê-la, de mim própria, dos outros; tento torná-la dispensável,caminhando sem pensar para dissipar o medo aterrador. Em vão, evoco imagens de outros cortes, de outras brechas na carne que me apavoraram, fizeram estremecer; que me pareceram fatais e que acabaram por sarar. Não acalma, mas continuo a caminhar, porque tenho de fazê-lo, porque não tenho saída, porque preciso continuar a cumprir os percursos quotidianos. E por uma decisão estranhamente autónoma do conjunto, os meus passos levam-me para um ponto deste lugar onde eu sei que alguém fecha as brechas, sara as feridas, torna-nos novamente aptos, funcionais, no esquema deste espaço. Os meus passos levam-me enquanto a minha cabeça se alheia, com uma sensação de necessidade parcial a par com o descrédito e o medo. Chego à enfermaria, que é também a entrada, na hora exacta em que a enfermeira, uma mulher forte, bem estruturada, de bata branca, deixa o seu gabinete e deposita uma chave, a sua chave, por detrás de um balcão. Olha-me, reconhecendo talvez a minha disfuncionalidade, o meu estropiamento que atingiu o olhar e eu exponho-lhe a minha mão que ainda não tive coragem de olhar, em desespero, por uma necessidade indefinível de ajuda e de dúvida e medo perante essa ajuda.
Preciso que alguém veja aquilo que eu não consigo ver, talvez porque a solidão de se saber mutilado seja o mais insuportável ainda que não se creia na cura, ainda que não se saiba sequer se se quer ser curado, se a cura de uma mutilação não encerra outra, mais funda. E quando o olhar dela pousa sobre a brecha da minha mão, e da sua boca ouço sair o conjunto de sons articulados, olho. Talvez por acreditar que o pavor supremo suprime toda e qualquer articulação de sons. E ainda que a sonoridade do seu discurso seja perturbadora, tranquilizo-me nela, pois é discurso. A minha ferida, o meu medo, o meu estado e o meu terror produziram um discurso sobre o qual eu posso pousar e colher qualquer coisa próxima da coragem.
Olho a brecha. Por entre os dois pedaços de pele que parecem jamais poder voltar a unir-se, pulsa uma imensa massa incandescente. É feito de lava o interior da minha mão. De vida ou de pré-vida. De inferno. De limbo, de entre-vidas. De caos primevo e cíclico. Um movimento contido, prestes a explodir, onde se pode ouvir os gritos dos titãs aprisionados. E eles chamam-me. Numa frequência que só eu pareço ouvir.
Articulo de novo na minha mente as primeiras palavras da mulher de modo a poder ouvir como discurso o que retive apenas como imagem. - Tem que deixar correr muita água sobre essa ferida, tinha dito ela.
Vai ser preciso suturar?, pergunto. Vai, responde ela abrindo muito os olhos sem se virar para mim, enquanto dá início à tarefa. Não protesto. Entrego-me, apesar de sentir que estará errado suturar. Que a pele pode voltar a juntar-se, que o pavor pode ser atenuado, adormecido, mas que eu sei que aquele magma vive dentro de mim. Que eu sei de que é feita a minha mão, ainda que ela possa voltar a funcionar no dia-a-dia. Sei que, a qualquer momento, as vozes voltarão a gritar, mais alto; que o movimento se exaltará, que os titãs encontrarão tecido vulnerável para nova brecha, que terei que dialogar com isso.
E enquanto a senhora bem estruturada, vestida de branco, sutura a brecha, que é ferida, negando a sua própria intuição de que seria preciso deixar correr muita água sobre a mesma, eu ouço as vozes chamarem-me para dentro dela, como um canto de sereia, irresistível, necessário, fatal.
E mantendo em mim a Noite, a média luz na qual a consciência se liga à verdadeira Luz, protejo-me daquela cura, entrego-me ao medo, disponibilizo-me para o mundo que vive na minha mão. Aceito o fascínio do terror, enquanto a senhora sutura, sob o modo da cegueira necessária, da cegueira que não cuida mas extirpa. Sutura a verdade do mundo, a verdade da vida. Fecha a brecha, a brecha do terror e da noite, a falha. Sutura o movimento. Lobotomiza a vida maior para que o quotidiano se (re)instale adormecido, funcional, inócuo. Sutura para mutilar a vida profunda. É esse o seu labor, a missão que se impôs no seu pequeno laboratório de mutilação maior, o laboratório que permite que o tempo siga a horizontalidade. Sutura não para me curar mas para se curar a si própria e ao seu mundo.
Saio de lá com a mão restaurada. Mas eu vi, eu guardo viva em mim a verdade da minha mão. E ainda que essa verdade não esteja mais exposta, não provoque por si só o terror, em mim ela persiste viva. E eu sei que não mais a minha mão poderá deixar de escrever, descrever, reescrever essa imagem, cumprindo a sua verdade, a verdade do mundo que me chama. Pois nesse caos primordial que entrevi na minha mão, eu sei que reside a verdade do meu estar no mundo.